sexta-feira, dezembro 28, 2007

O recrutamento terrorista e a sociedade civil 1

A questão do terrorismo, da cultura de publicitação de violência e da imposição de uma ordem que se quer nova, contra uma ordem dominante mas que se pretende substituir ou subjugar, tem que ser analisada também do ponto de vista do recrutamento de membros dispostos não só a matar como a fazê-lo morrendo ao mesmo tempo, e isso em nome de um projecto social. Esse projecto social tende a ser sedutor não só na comunidade dos indivíduos mais dispostos a aceitarem a crença por essa forma de politização das suas vidas, mas também junto da sociedade civil onde essas pessoas vivem , e daí uma razão da aparente inesgotabilidade das fontes de recrutamento. Quando as sociedades desses mesmos países consciencializarem o perigo pela arbitrariedade do uso da violência e se sentirem preparadas para negarem o seu apoio emocional, logístico ou racional a essas teorias e acções, elas tenderão a ser tratadas como um caso de polícias e não como manifestações de organizações a procurarem legitimidade, como se de uma luta pela ideia de um pequeno David a combater o grande Golias imperialista ocidental. E se calhar as sociedades civis só começarão a repudiar aquilo que começarem elas próprias a conhecer como formas de abuso, como tentativas de espoliar os próprios cidadãos que esses grupos radicais dizem proteger.

Benazir Bhutto talvez continue a sua própria batalha pela democratização do Paquistão na luta de ideias que se seguirá, onde ela poderá permanecer como exemplo de acção, como contraponto no mundo de ideias radicais sobre a vida social.

Ouço na CNN uma jornalista que entrevistou recentemente Bhutto, fala de uma mulher que tinha consciência do perigo que corria mas também do seu sentido de obrigações como política numa campanha em democracia, a de que tinha que ir fazer campanha e passar a sua palavra directamente em encontros e comícios. Fala de uma mulher que também se sentia culpabilizada pela atenção excessiva que dera à política nos últimos dez anos em detrimento da sua vida familiar. Como se ser mulher e ser política é sempre uma tarefa tremenda. Existência tremenda.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

partidocracia/bem comum

"Mostra-me o teu talento; não me mostres o cartão do partido", disse Brecht, a um actor que lhe apareceu no Berliner Ensemble, resguardado com o facto de ser militante comunista. E correu com o apadrinhado. A lição não perdura. Estabelecida a vocação da "cunha" partidária, o instinto de independência moral provoca indiferença e, até, hostilidade. A inteligência, o mérito, a integridade e a habilitação são castigados como delitos. O que se observa, nos tristes casos da BCP e da Caixa Geral de Depósitos, com a disputa da pertença circunscrita aos assim chamados "partidos de poder", reflecte o mais atroz impudor. As exclusões permitem-nos concluir que o PS e o PSD perderam o respeito pelos portugueses e a dimensão colectiva que se lhes exige. Aliás, o projecto inscrito na exigência de um mínimo de cinco mil militantes por partido e a revelação dos seus nomes é desprezível, por equivaler a uma estratégia de poder absoluto do "centrão". É preciso conciliar os vínculos morais com os traços distintivos das nossas indignações. "
"A ESCADA DE JACOB" de Baptista-Bastos, escritor e jornalista in DN online
b.bastos@netcabo.pt

domingo, dezembro 23, 2007

E porque estamos tão próximos do Natal

"A.B.- Confundir Deus com poder é fundamentalismo. É preciso derrubar todos os ídolos para, no fim, ficar o encontro com Deus, Mistério Infinito, na mística.
Mário Robalo: - O místico não é aquele que foge do mundo?
A. B. - Pelo contrário. Aliás, é muito interessante observar que Jesus não olhou em primeiro lugar para os pecados mas para os sofrimentos das mulheres e dos homens, e fez tudo para os aliviar. A mística tem de traduzir-se em compaixão pelos seres humanos. Particularmente pelos que sofrem. No futuro, ou há uma experiência mística autêntica ou as religiões degeneram."
" ..
Padre Anselmo Borges em entrevista ao Expresso de 22 de Dezembro.
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Um dia confundi Deus com poder e perdi-o por esse cosmos fora. Tenho eu a pretensão de dizer. Errado, dir-me-ia Rilke, se Rilke pensasse que a carta que escreveu ao poeta Kappus também poderia ser lida por mim. Errado está aquele que pensa que perdeu Deus, porque se o perdeu é porque na realidade nunca o encontrou: "(...) pergunte a si próprio, meu caro senhor, se realmente O perdeu ou se não será mais verdadeiro pensar que nunca O possuiu."* Seja. Aceito sem retorquir que assim tivesse sido. Não perdi o que nunca tive. Está bem, mas daí nem consolo nem desconsolo obtenho. Não há palavras que possam repor essa ideia perdida, mesmo se imaginada. Nem a comoção pela pessoa de Cristo nem o respeito pela esfera do sagrado, que na realidade me inquieta mais do que sossega, nada faz laçar esse laço deslaçado.
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E no entanto é quase Natal, podemos pois esquecer essa entrevista de um candidato a primeiro-ministro nas mesmas páginas de um jornal onde são publicadas as sete conclusões do "livro branco" sobre o emprego. Conclusões que põem em causa muitas das ideias feitas dos políticos que mastigam teorias estrangeiras para formatar a realidade portuguesa aos seus interesses, e que põem em causa muitos dos objectivos afirmados daquele que quer ser o futuro governante de Portugal e que tem sobretudo duas ideias: desmantelar o Estado e investir-se no estilo de actor político da nova coqueluche europeia no imaginário dos políticos machos que é o Sr. Sarkozy. Como princípios orientadores de oposição ao governo de Sócrates estamos conversados.
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* Rainer Maria Rilke, Cartas a um Poeta, trad. Fernanda de Castro, Lisboa, Portugália Editora, 1971, "carta VI", p. 63.
E eu que comecei este texto com palavras tão nobres, foi logo o pensamento escapulir-se por esquinas e travessas...

sábado, dezembro 22, 2007

"o regresso da barbárie" 3

Seguimos de perto as nossas ideias, diz-nos Delpech. Uns mais que os outros, penso eu, porque nisto de se seguir ideias também hão-de perceber-se níveis diferentes de vontade ou de poder de concretização. A compreensão da questão da vontade excede em muitos casos a mera enunciação de obstáculos ou de incentivos externos para a formação da mesma, porque a vontade resulta de uma combinação de estados mentais internos e de condições fisiológicas e histórica-sociais cuja fórmula de mediação eu desconheço. Mas já o poder de concretização de ideias resulta muito mais dos atributos sociais que cada indivíduo ou grupo consegue reclamar para si, e que todos podemos enunciar: pelo dinheiro, pela força bruta que é capaz de evocar, pelo enquadramento num partido político ou em outra instituição social, militar ou religiosa que acomode e oriente o indivíduo atribuindo-lhe um certo ascendente no percurso para o uso do poder, pelo estatuto social do nome que criou numa determinada área pela sua obra pessoal ou que terá herdado da família, pela capacidade de se relacionar e de reunir à sua volta as pessoas que contribuirão para o encaminhar ou o incentivar à realização dessas ideias, pela competência em convencer ou persuadir outrem a acreditar em si e nas suas intenções. São factores que podem ser enunciados como catalizadores da capacidade de seguir ideias, e tudo isto, no que a grandes decisões de política diz respeito, não faz parte da história individual da imensa maioria de indivíduos no mundo.
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Quer dizer que no campo do poder político há uma minoria que tem a quase ilimitada possibilidade de seguir as suas ideias e depois, se o fizer de forma democraticamente legitima, porque até pode não ser o caso, e se convencer os outros a autorizarem-no a seguir essas mesmas ideias pode fazê-lo enquanto a vontade popular e a constituição do país lhe permitir orientar a acção pública. Mas será que as ideias vêm exclusivamente do governante? Ou será dos seus conselheiros? Mas se este fosse o círculo exclusivo da produção de ideias, viver-se-ia sob a pressão vertical do pensamento do governante sobre o dos governados. Como se só a ele ou aos do seu meio e que com ele se relacionam coubesse pensar o mundo e a sua ordem. Ora isso não acontece assim. As ideias não se vaporizam a partir do alto para as bases esvaziadas, ou pelo menos não exclusivamente e sobretudo, não as dos governantes que na sua grande maioria as vão buscar ou às estruturas ideológicas estruturais dos seus programas partidários ou aos pensadores que admitem mais próximos da sua forma de pensar ou, sobretudo, às modas discursivas conjecturais: ao ar do tempo da civilização que melhor souber expandir-se através de todos os canais de comunicação. Outros têm as ideias do tamanho do seu próprio ego e produzidas pela ideia de satisfação e interesse pessoal, confundindo os povos com a etiqueta de desígnio nacional.
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Mas então de onde vêm essas ideias? E como se formam? E como fazem mudar os comportamentos para se coordenar com o ideal que se teve para enquadrar esse comportamento? Para respondermos a isto teremos que ir pela teoria das elites (e não é uma teoria inquestionável, logo há que definir o que se entende por elites e qual a sua origem, natureza e finalidade) e pela teoria das influências (no entanto há críticas e revisões à teoria clássica sobre os líderes de opinião, e estas têm que ser contempladas na definição do conceito "influentes"). Mas Delpech não se detém com estas interrogações. A autora preocupa-se, é claro, em explicar as fontes das ideias correntes, mas generaliza nas noções de mudança de representação do tempo que herdamos com a modernidade, com o novo tipo de psicologia do homem ansioso e apressado moderno.
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Delpech coloca-se na perspectiva do observador que procura estar atento às ideias que contam no nosso tempo e que tenderão a provocar a acção correspondente, e enuncia-as. Eu não sei se as vou conseguir enumerar a todas, mas sintetizei-as com a seguinte ordem:1. "(...) os grandes projectos e as ideologias suscitam mais desconfiança do que entusiasmo." (p.130); 2. Memória curta em relação ao passado e personalidades sem motivação para se sentirem responsáveis perante os acontecimentos que ocorrem no presente ou sobre os que hão-de vir no futuro (p.130); 3. Ausência de uma batalha clara de ideias que congreguem os indivíduos à volta de valores como os da ideia de liberdade na história ou um projecto político radical para acabar com a fome no mundo, entre outros (pp.138-139); 4. Descrença nos valores ocidentais (p. 139); 5. Controlo/Descontrolo da tecnologia e das armas a ela associada (p.149); 6. "Regresso dos grandes medos medievais no início do século XXI, quer se trate das catástrofes naturais, quer das grandes pandemias." (p.166); 7. "Os membros permanentes do Conselho de Segurança continuam a colocar os seus interesses nacionais acima dos da paz e da segurança internacional que justificam os seus privilégios e nomeadamente o do direito de veto."; 7. "Somos os infelizes herdeiros dessa (...) insensibilidade duradoura às violências internacionais e nacionais (...) (p.106)

sexta-feira, dezembro 21, 2007

"o regresso da barbárie" 2

O livro de Delpech combina uma boa e fluida reflexão sobre os acontecimentos de política internacional passados com uma hipótese controversa para descrever o futuro imaginado. A autora delimita um conjunto temporal cuja representação se compreende entre os marcos cronológicos de 1905 e 2025.
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O ano de 1905 escolheu-o a pensadora por ser um ano que ela define como uma data de "ponto de viragem das ideias" (p.109), pois foi nesse ano que em física, em psicologia, na arte e na política as novas formas de pensar e de criar do século XX terão começado. Einstein na física, Freud na psicologia e os "Fauves" e futuristas na arte , abalam os modelos tradicionais de entender o comportamento dos corpos, das mentes e da acção artística. Todo um novo comportamento individual e social, e uma nova compreensão para esse comportamento, estava a evoluir, o que fazia esperar que qualquer coisa de novo acontecesse. Mas esse comportamento novo tinha que originar uma ordem violentamente agressiva e destrutiva, tal como se veio a provar que o era?
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Delpech afirma que qualquer observador perspicaz em 1905 podia prever o desmoronamento do império russo, a ascensão do militarismo japonês, uma guerra entre a Alemanha e a França por paixões nacionalistas e o papel ascendente de intervenção da América nos destinos mundiais, como começava a acontecer com a intervenção dos EUA como mediador entre a Rússia e o Japão, e como Tocqueville já o dera a entender que assim seria (p.104).
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E qualquer observador perspicaz poderia compreender que se estava a preparar então um século de terror e destruição, no seguimento da interiorização e gosto por ideias de morte e de conflito, uma época que febrilmente dá a precedência à força das armas sobre a força do direito na resolução de conflitos (p.99), e que cria uma habituação e potencia uma insensibilidade psicológica à morte e à violência que os conflitos e as guerras sucessivas irão potenciar. É curioso que a autora ressalve apenas a imprevisão do aparecimento de Hitler (p.115). Como se este não coubesse em nenhuma história do mal, mesmo imaginada. O absoluto homem novo do mal. Hei-de voltar a esta ideia.
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Se os acontecimentos do passado estão bem pensados, pois Delpech traça a história intelectual do início do século para se compreender as razões que levaram à acção política e social que da divulgação das ideias se faz realidade, já a sua predição para o futuro, mesmo que partindo de uma arguta análise dos acontecimentos do presente, é mais polémica. Não que ela se engane no método adoptado, a saber: inventariar as ideias e os valores que circulam, que têm mais poder e que estão a ganhar terreno (p.85). É isso mesmo que terá que se fazer se quisermos falar sobre o futuro, porque, como ela diz "A humanidade, tal como os indivíduos, é sempre confrontada com escolhas e todos os seus actos têm consequências" (p.131). Mas é questionável que ela tenha encontrado em 2o25 a marca de água que exemplifica o zénite de uma cadeia causal de acontecimentos.
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Porém, Delpech defende-se dizendo que nos é permitido imaginar o futuro porque a maior parte do tempo seguimos na direcção dos nossos pensamentos. E sobre esta ideia, e sobre o tipo de pensamentos que estamos a seguir na contemporaneidade, que no próximo post se escreverá.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

O tempo e a quantidade nos media

A minha amiga Susana Salgado fez ontem a defesa da sua tese de doutoramento. Através da análise de conteúdo chegou à seguinte conclusão: "Os media, no caso das eleições presidenciais portuguesas de 2006, e em especial o jornal "Expresso", sendo seguido pelos outros por mimetismo , terão contribuído para o apagamento de uma certa imagem de Cavaco Silva do fim do seu mandato como primeiro-ministro e de reconstrução de uma outra que o terá levado à vitória em 2006." Que é como quem diz: "Os media anteciparam a opinião política ao invés de se manterem na atitude de só a reflectirem". Assim sendo, o jornal "Expresso" pode gabar-se de ter conseguido eleger um Presidente da República.
A Susana provou que os media foram utilizados para dar uma imagem de fiabilidade e rigor do candidato Cavaco Silva e nela foram testadas estratégias de comunicação que resultaram numa evolução da imagem do candidato ao longo do tempo, criando uma ideia de consonância entre media e público.
Os arguentes contrapuseram do seguinte modo: 1. A Profª Cristina Pontes lamentou a ausência de uma análise mais aprofundada sobre a figura do Presidente da República na sociedade portuguesa, bem como a ausência de comentários ao conceito de carisma tal como fora desenvolvido por Max Weber; 2. O Prof. José Rebelo relevou a falta de leituras que considerava fundamentais na área da génese da narrativa mediática e sobre o modo de produção e recepção dos novo media. Criticou ainda os estudos que privilegiam a análise quantitativa e que consideram a quantidade como o critério mais relevante para definir a importância, e a sobrevalorização do dito sobre o não dito. O Prof. disse ainda que teria gostado que a candidata tivesse desenvolvido o tema do posto e do pressuposto como Oswald Ducrot o enunciou e concluiu que esta tese não explica porque começou o candidato Cavaco Silva em pré-campanha com sondagens da ordem dos 65% a 70% tendo depois obtido cerca de uns regulares 51%, ou porque razão o segundo candidato com uma exposição mais intensa nos media, Mário Soares, teria afinal obtido um terceiro lugar, atrás do candidato Manuel Alegre. Quis também o Prof. relembrar as muitas campanhas que no mundo recorrem à utilização massiva dos media (a campanha pelo "sim" ao referendo em França, que perdeu; a campanha do PP em Espanha que perdeu para o PSOE) e que tiveram efeitos contrários ao esperado, numa crescente relativização dos Mass Media tradicionais; 3. O Prof. João Pissarra reclamou pela necessidade que sentiu de dever ter sido mais aprofundada a questão das vantagens e necessidades de uma campanha negativa, segundo os critérios do próprio Marketing político, questionando os critérios de avaliação da informação escolhidos pela candidata.
A todas as críticas a Susana respondeu que o seu trabalho dizia respeito a um determinado tempo e assentava sobretudo na análise de informação através do método de "análise de conteúdo". Acrescentou que os dados a que chegara foram exactos e que as conclusões seguiam desses dados. O seu trabalho não era de reflexão teórica pois não fora essa a perspectiva adoptada nem o objectivo inicialmente proposto. Citando de memória uma parte da intervenção do seu orientador, o Prof. Villaverde Cabral, na melhor defesa de um candidato que ouvi até hoje:"A Susana, com a cautela de um lince, tratou a política segundo o método de análise que a ela mais lhe garantia distanciamento e a certeza de neutralidade, tal como a ciência política o tem vindo a privilegiar desde 1915."
A tese há-de sair em livro e depois haverá muitas reflexões que com certeza ela levantará. Ontem foi apenas o princípio desse trabalho em curso. Eu gostei do confronto de argumentos e, como teórica, procurei posicionar-me entre o método de análise adoptado pela Susana, que não domino, e as críticas dos arguentes sobre questões que, de certa forma, conheço melhor.
As questões que ficaram serão: estavam em confronto duas formas de fazer ciência ou não? Estarão os pressupostos teóricos de enquadramento dos media a mudar ou, pelo contrário a manter o papel tradicional de orientação de efeitos, tal como a Susana quis provar?
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Parabéns Susana, estes trabalhos de análise da política em Portugal, que noutros países são moeda corrente, são fundamentais para que haja dados sobre os quais reflectir. Senão passamos a falar de cor de assuntos sobre os quais não temos informação quantitativa, apenas ideias vagas.

terça-feira, dezembro 18, 2007

A Guerra a partir da paz

Já toda a gente tinha elogiado o documentário. Eu calava-me por desconhecimento da causa. Hoje consegui finalmente ver grande parte do episódio número nove de "A Guerra" de Joaquim Furtado. Que trabalho bem feito, a lembrar outros que recentemente a RTP, sobretudo, mas também a SIC notícias, no passado, conseguiram montar. A continuar assim, o que nos vem faltando de memória histórica dada pela ficção cinematográfica, por exemplo, chega-nos, sublimada pelo tempo sobre as personagens reais de acontecimentos marcantes, através de formidáveis documentários como este.

Ouço e procuro equacionar o puzzle de razões que levaram à luta armada em Moçambique. E no entanto a sua necessidade, a sua inevitabilidade, esteve a um passo de ser negada, pois na imensa contradição dos meios a utilizar poder-se-ia ter avançado para as negociações e para a independência como um direito inquestionável dos povos colonizados.


E penso na contingência das decisões históricas, na real possibilidade de tudo aquele sangue ter podido sido resgatado se os governantes portugueses tivessem menos enquadramento vivencial assente na ilusória ideia de um império uno e indivisível e mais na ideia de mundo das nações.
Mas o documentário não nos leva para um lado ou para outro no que à defesa da ideia de autodeterminação dos povos diz respeito, deixa-nos perceber como os próprios actores viveram esses tempos conturbados e cheios de dúvidas e de pressões internacionais, de vontades cruzadas nos enquadramentos culturais e sociais da época e que hoje nos aparecem quase límpidas enquanto explicações dadas por pessoas inteligentes, conhecedoras e cidadãos conscientes nos seus respectivos países.

É muito boa a ideia de legendar pela cartografia os discursos dos entrevistados sobre locais a que se referem e que hoje nós já quase não conhecemos de todo e que circunscrevem o espaço dessa intercessão da história de África com a de Portugal.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

O nome da Birmânia e as coisas

Na versão portuguesa do Panorama BBC dedicado às manifestações de Setembro e de Outubro na Birmânia optou-se sempre pelo nome Myanmar para traduzir o nome do país que os próprios entrevistados, opositores ao governo, nomeavam por Birmânia.
A nossa tradução terá seguido critérios técnicos, e, ousemo-lo pensar, também critérios políticos. Na realidade pertencemos a um país que fazendo parte da União Europeia reconheceu a nova denominação política imposta pelo governo da Birmânia. Eu fico siderada com o “servicinho” feito à junta militar que governa em ditadura um país e que o controla até no nome que desejou outro e que a União Europeia, e até as Nações Unidas, Deus meu!, sancionaram. Não que os nomes tenham que permanecer imutáveis no tempo que por si tudo permite ou exige que se mude, mas ao menos que haja a regra de não aceitar as mudanças impostas por governos sem legitimidade política juntos dos povos que governam.
Há que ter pejo em não confundir os males do colonialismo com as arbitrariedades de um governo, só por estes serem de nacionais. E o mal de um nome imposto pela cultura ocupante não tem que necessariamente ser de uma natureza diversa do mal imposto por um governo usurpador do poder político. Pode até, historicamente, justificar-se e compreender-se melhor o primeiro dos males.
E esta questão dos nomes não é só uma “chinesice”, que também o é por mor da protecção da grande China ao governo despótico que controla a ordem social e política na Birmânia, pois como todos sabemos os nomes dizem mais da realidade do que ela própria o consegue fazer quando nos aparece bestial por inominável poder permanecer.

Lembro Romaine, a personagem de Mélo (um filme que glosa o tema uma Madame Bovary no século XX), quando ela se insurge contra o facto de o marido usar sistematicamente um diminutivo quando a ela se dirige, a demonstrar que a reivindicação de um nome próprio é um sinal de autonomia e de afirmação de identidade.
Que nome próprio os birmaneses querem ver usado para o seu país ninguém verdadeiramente o sabe. Há que esperar pela democracia antes de aceitar os baptismos forçados, em nome da liberdade para o povo da Birmânia.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

E agora, senhores e senhoras, meninos e meninas, o tratado de Lisboa e os seus leões.

Muitas vezes penso que não vou ser sentenciosa, que não vou moralizar, que vou impedir-me de me pôr na posição ridícula de um qualquer alado observador privilegiado da realidade, que tenho perfeita consciência de que não o sou e até de que a existência dessa entidade em termos históricos seja controversa no contexto filosófico. Penso, mas nem sempre escrevo em conformidade. Enveredo pelo ridículo. Mais um contra-senso.

“A Isabel é uma panfletista” criticou-me o professor da cadeira de filosofia política há mais de uma década atrás. Pelo menos não me acusou de desonestidade intelectual. O que seria da maior gravidade. Criticou-me então o que ele entendia ser acentuado no meu trabalho de um carácter revelador de concessão à filosofia POP. Mesmo assim não gostei do remoque. Mas se este não se me tivesse colado de uma certa forma ou de outra, também já o teria esquecido. E eu não o esqueci.

Eu gosto de festas, faço esta declaração de princípio. Partilho daqueles clichés todos sobre os vestidos, os cheiros, a elegância, os risos, a música, a comida e a excitação do grupo. Gosto das luzes e das conversas, gosto de borboletear. Podem ser festas populares, onde o cheiro da sardinha assada nos deixa enjoados durante semanas e o excesso de sal nos ressaca o fígado, a música nos confrange até a espinal medula e somos empurrados de um lado para o outro, gosto das festas de crianças que guincham e se movem em cardume com as mãos cheias de coisas peganhosas de encontro a nós, gosto ainda das festas dadas por amigos discretos cheios de carinho e de bom gosto. Não gosto mesmo nada é de festas misturadas com rituais do poder político. E porquê? Primeiro porque me apetece logo perguntar quem é que paga aquilo tudo, é um vício de pequena burguesa que gosta de saber onde se aplicam os cêntimos, segundo porque quando os políticos em exercício de funções governativas se põem ao serviço do espectáculo cinematográfico ou televisivo, deixam de laborar naquilo que é próprio da política, o discurso, e passam a figurantes no negócio do entretenimento. Na política, e no exercício do poder político, o ritual a consagrar é o da oferta da palavra. É esta que tem ser ouvida, aceite ou recusada, homenageada ou apupada. Não são as cores, a música, as imagens iconográficas, porque este é o discurso de outra arte que não a da política..

Detestei a “festa” no Mosteiro dos Jerónimos sobre a assinatura do tratado de Lisboa. Claro que embasbaquei com o espectáculo de luz e som, mais por incredulidade, pois não gostei mesmo nada do que ali foi montado. Desviou-se a atenção da palavra, pois as populações europeias mal sabem o que ali foi assinado, e centrou-se no frenesim luz/som, à Hollywood.
Depois a emoção do nosso primeiro-ministro, toda epidérmica, porque a parecer não estar focalizada sobre o raciocínio manifesto sobre a importância do conteúdo do tratado na vida dos povos europeus, mas no facto de ter conseguido realizar mais este acto da assinatura (é certo sem as sinecuras do primeiro-ministro inglês, que tem poder na Europa para ser malcriado quanto quiser, o que também é muito benéfico para o famigerado "espírito" europeu).
Este é o homem que quer ser conhecido como o empreendedor , do que age, mesmo se suspende o pensamento ou não quer contemplar as consequências da sua acção ou as interpreta à luz dos seus interesses na prossecução da mesma atitude. É um governo do tipo boneco “action man”, em auto-glorificação de uma ideia de pragmatismo que um dia talvez fique para a história como uma das ideias mais estúpidas em política.


O ritual da assinatura do Tratado de Lisboa não devia, com rigor e circunspecção, ter sido feito durante uma sessão do parlamento europeu à frente dos representantes do povo europeu?

Se este tipo de análise política se generalizasse o que não aconteceria ao discurso empolado dos nossos governantes e ao desleixo da oposição?

Democrats Debate in Iowa
December 13, 2007
Richardson stands out for exaggerated and inaccurate claims.
Summary
In the final Democratic debate in Iowa, we found:
- Richardson claimed “enormous progress” in New Mexico education, when in fact the state's eighth-grade reading scores have slipped and remain among the worst in the U.S.
-Richardson exaggerated the extent to which his state's teacher salaries increased.
-Richardson said one-third of U.S. health care spending goes to “administration and bureaucracy,” but Medicare officials put the figure at 7.4 percent.
-Dodd said University of Iowa costs have gone up 141 percent in six or seven years; we find they rose 81 percent.
-Dodd criticized “the Chinese government” for slave labor, when in fact it just sentenced a slaver to death.
-Obama claimed Medicare would save “a trillion dollars” if fewer Americans were obese. We find little support for that figure.

Republicans Debate in Iowa
December 12, 2007
More exaggerations and misstatements in the final GOP debate before the Iowa caucuses.
Summary
In the Dec. 12 Republican presidential debate in Des Moines:
Arizona Sen. John McCain promised to make the U.S. “oil independent” within five years, a goal experts say can’t be achieved.
Former Massachusetts Gov. Mitt Romney claimed American students score in the bottom quarter among industrial nations, but they score about average in the most recent tests.
Romney also claimed that federal programs to prevent teen pregnancy are “obviously not working,” while in fact births are dramatically below what they were in 1991 despite a relatively small increase last year.
Former New York Mayor Rudy Giuliani said a big federal tax cut would produce “a major boost in revenues for the government,” a notion that nearly all economists say is a fantasy.
Former Gov. Mike Huckabee claimed he had the most impressive record on education of any GOP candidate, even though Arkansas children scored below the national average while those in Romney’s Massachusetts were No. 1.
Rep. Duncan Hunter claimed the cost of administering and complying with the federal income tax is $250 billion a year, far higher than the figure given by a recent presidential advisory commission.

Analysis
The 90-minute debate was sponsored by the Des Moines Register and televised nationally on CNN, Fox News Channel, MSNBC and C-SPAN3. It was the final debate among GOP candidates before the first-in-the-nation Iowa presidential nomination caucuses, which are scheduled for Jan. 3.We noted the following factual bloopers:
Move Over, Al GoreSen. John McCain of Arizona announced a lofty, and, according to experts on the subject, improbable goal of ending foreign oil imports in five years.
McCain: We have got to achieve energy independence, oil independence in this nation. I will make it a Manhattan Project, and we will in five years become oil independent.We can’t predict the future, so perhaps McCain can make this happen. But experts have serious doubts. “There’s just no way,” says Frank Verrastro, director of the Energy and National Security Program at the Center for Strategic and International Studies. “You can’t institute technological change that quickly,” he tells FactCheck.org, adding that the U.S. couldn’t ramp up alternative fuels that quickly. “It takes 15 years now to turn over the car fleet,” he says. Verrastro's organization and the National Petroleum Council issued a report this summer, commissioned by the secretary of energy, that found the U.S. could reduce its reliance on oil imports by a third by 2030 if it instituted various measures, such as increasing fuel efficiency, domestic sources of oil and non-petroleum fuels. Another study, partly funded by the Pentagon and published in 2004 by the Rocky Mountain Institute, a nonprofit that focuses on energy policy, said it would take until 2040 for the nation to be free of all oil imports, by primarily using new technologies and competition. The nonprofit Americans for Energy Independence vows to “use grass roots support to achieve our independence by the year 2025.” About 66 percent of the oil used in the U.S. in 2006 came from foreign imports, which amounted to 13.7 million barrels a day. Says Verrastro: “Getting rid of that in five years is a huge task.”
How Low Can You Go?Former Massachusetts Gov. Mitt Romney exaggerated the extent to which the U.S. lags behind other industrial nations in education. He said, "Our kids score in the bottom 10 or 25 percent in exams around the world among major industrial nations." That's not so. Actually, the U.S. ranked closer to the 50th percentile than the bottom quarter, according to the most recent rankings by the Programme for International Student Assessment (PISA), an internationally standardized study administered to15-year-old schoolchildren in 57 countries.Students in several nations were tested in 2006. In science, the U.S. ranked 29th out of 57, or at the 49th percentile. And in math, the U.S. ranked 35th out of 57, or at the 39th percentile. The U.S. was not ranked in reading for 2006 because of a testing misprint, but in the previous round of testing in 2003 U.S. students again landed near the middle, scoring 15th out of 29, or at the 48th percentile.A Romney campaign aide said the candidate was referring to a much earlier study in which the United States finished 19th out of 21 nations in math and 16th out of 21 nations in science. But that study, the Third International Math and Science Study (TIMSS) is from 1998.
Teen PregnancyRomney also said federal programs to combat teen pregnancy are "obviously not working real well." Actually, the teenage birth rate declined consistently from 1991 to 2005, dropping 45 percent for 15- to 17-year-olds, 26 percent for 18- to 19-year-olds and 34 percent for 15- to 19-year-olds. It's true that the most recent report shows the birth rates for these age groups increased in 2006, but the change was small: a 3 percent increase for 15- to 17-year-olds and for 15- to 19-year-olds, and a 4 percent increase for 18- to 19-year-olds. There was a 14 percent decrease for 10- to 14-year-olds. (Ler mais aqui)"


Voz familiar adverte-me: "Não te esqueças que nos Estados Unidos o serviço do FactCheck é lido por uma minoria." Pois será, mas existe o serviço, e os políticos sabem-no. É mais uma forma de aprenderem a respeitar a verdade.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Direitos Humanos ou a responsabilidade de proteger


Sam, blogger do Fênix ad eternum, convidou-me para participar hoje com um post na campanha pelos Direitos Humanos. É um privilégio poder juntar a minha escrita à de tantos outros bloggers. A imagem vem de Lino Resende.
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A minha proposta de reflexão é a seguinte:
O documento "The responsability to protect" é um dos mais importantes instrumentos que as Nações Unidas têm neste momento para ajudar a resolver o problema/dilema acerca das intervenções humanitárias no mundo.
A doutrina clássica das Nações Unidas, baseada na Carta, proibia intervenções humanitárias e é bem claro porquê, já que o número de mortes civis aumentava e o conflito recrudescia sempre que havia uma intervenção internacional para resolver problemas internos, e porque as Nações Unidas partiam de uma definição de soberania que salvaguardava o direito de cada Estado proceder dentro das suas fronteiras de forma autónoma e livre de intervenções externas. Ressalvava no entanto o direito à assistência humanitária.
Leia-se o seguinte na página da NATO Review: "A questão foi objecto de inúmeros debates durante os anos 90, designadamente no seio da OTAN. Os casos principais - quer tenha havido ou não intervenção - estão gravados na nossa memória. Nenhum deles foi conduzido adequadamente nem com segurança: "o desaire da intervenção internacional na Somália em 1993; a resposta pateticamente inadequada ao genocídio no Ruanda em 1994; o fracasso da presença da ONU para evitar a mortífera limpeza étnica em Srebrenica na Bósnia-Herzegovina em 1995; e, ainda, a intervenção da OTAN, sem a aprovação do Conselho de Segurança, no Kosovo em 1999."
Mas a polémica era evidente: havia ou não por parte das Nações Unidas o dever de intervir num estado soberano para defender a população em perigo?
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Em 1999, Kofi Annan pediu à Assembleia Geral das Nações Unidas que reflectisse sobre a questão da intervenção humanitária, de molde a estabelecerem-se critérios e métodos que fixassem a regra quanto às futuras práticas de intervenção humanitária no mundo, pois a opinião pública internacional parecia estar a exigir um reforço do conceito de assistência humanitária. Foi o Canadá quem avançou com a proposta de criar uma comissão internacional que trabalhasse esse tema . Assim a "International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS)" produziu e apresentou em 2001 o documento "The Responsibility to Protect".
O primeiro conceito a ter que ser repensado era o de soberania. Até aqui, as razões que limitavam ou inibiam a defesa das intervenções humanitárias prendiam-se com a primazia dos superiores interesses de respeitar a soberania de um Estado sobre os interesses das populações desse Estado. Ora propondo uma alteração no conceito de soberania e reorientando o discurso das Nações Unidas não a favor de um direito de intervenção mas de um dever responsável de proteger, poder-se-ia então apresentar uma nova doutrina em defesa dos povos.
Os argumentos evoluíram em duas linhas: 1. A chegada de novos actores institucionais não estatais com responsabilidades de decisão em assuntos internacionais assim bem como o alargamento das Nações Unidas que conta agora com 189 Estados membros que trouxeram novas perspectivas e propostas de actuação comum, e que dariam mais sustentabilidade representativa a uma resolução do problema; 2. As condições sob as quais a soberania era exercida terão mudado desde 1945. O que se entende por soberania, e por respeito para com essa soberania, não implicará nunca o respeito pelo direito de um Estado soberano poder exercer um poder ilimitado sobre o seu povo, pois agora exige-se que um Estado soberano não só respeite a soberania de outros Estados, como seja igualmente responsável por ter que respeitar a dignidade e os direitos humanos básicos do seu próprio povo.
Ora já se vê que ao reclamar por esta dupla responsabilização dos Estados soberanos, as Nações Unidas estão preparadas para virem dizer que podem intervir na política interna de cada Estado, não só para defender Estados soberanos de serem atacados por terceiros, mas também pode intervir na defesa de povos cujos direitos essenciais sejam postos em perigo pelos seus próprios Estados.
A nova doutrina pretende evoluir em três fases, procurando que a intervenção militar seja o último dos recursos a ser utilizado: 1. Responsabilidade de prevenir; 2. Responsabilidade de reagir e 3. Responsabilidade de reconstruir.
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Para além de todas as criticas que insistem na ideia que este documento legitima a continuação de uma política internacional neo-colonialista, críticas que não são irrelevantes, e que não aceitam que se ponha em causa o último reduto da defesa junto da comunidade internacional de cada Estado entendido como soberano, pois em nome de causas e princípios pode-se moldar políticas de ingerência para responder aos interesses dos Estados mais fortes, há ainda a considerar questão da coerência da prática à teoria, ou da ausência dela.
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Para que um princípio ou uma norma internacional se torne direito internacional consuetudinário há que utilizar essa norma de forma sistemática, criteriosa e clara. Transformá-la numa prática institucionalizada. Ora muitos autores consideram que a situação teste desta norma da "responsabilidade de proteger" está no Darfur. O povo do Darfur representa a situação tipo pela qual a norma recém criada da "responsabilidade de proteger" foi pensada. Ora o que está acontecer, com o défice de intervenção internacional nessa região do globo, está a hipotecar a teoria.
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A comunidade internacional, a parte que aceitou os argumentos a favor da norma "responsabilidade de proteger", continua a produzir textos a reclamar pela necessidade imediata de actuar segundo o dever de proteger no Darfur, mas na prática temos assistido a avanços e a recuos no tipo, na forma e no tempo útil de proceder a uma intervenção, o que está a pôr em causa a teoria junto da comunidade internacional de povos soberanos.
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Não me parece que a razão esteja em serem as pessoas do Darfur de cor preta, como alega o blogger do Alto Hama, porque a comunidade internacional sempre tardou em reagir mesmo em regiões do globo onde as pessoas eram louras de olhos azuis, e ainda que em conflitos anteriores a 2001, logo anteriores à produção desta nova teoria. Este adiar de uma reacção talvez se dê porque as mudanças de doutrina e consequente reforço pela prática não estejam suficientemente interiorizadas pelos políticos e seus estrategas, ou porque todos temam, mesmo as potências, o que no futuro representará um corte (também) no seu absoluto direito de soberania.
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Dar um passo em frente para realizar a norma da "responsabilidade de proteger" representa mais do que coragem para defender o povo do mundo, representa uma imposição ao limite do poder político dos Estados no mundo. Estamos a ver o que isso implica na cabeça de governantes, não estamos? É todo um novo paradigma de poder que pode estar em mudança. E enquanto não há evidências civilizacionais, e enquanto a teoria não é socializada em profundidade, o direito internacional em defesa da vida humana é subestimado. Pior, a própria vida dos indivíduos é subestimada, sejam eles pretos, amarelos, brancos ou vermelhos.



domingo, dezembro 09, 2007

A indiferença

Os meus amigos que residem fora de Portugal riem-se muito com a grelha da nossa informação na imprensa ou na televisão. Dizem-na provinciana. Pegam em cronómetros e deliciam-se a contabilizar o tempo que um telejornal português dedica a assuntos europeus, por exemplo. Eles trabalham em organizações internacionais, são bem informados e bem relacionados, e contam-me como os colegas franceses, alemães ou ingleses não sabem nada acerca dos acontecimentos que discursos embandeirados em arco dos políticos portugueses fazem crer ser o centro do universo político europeu, quando não mundial.
Eu irrito-me. Não por nos chamarem provincianos, mas pela falta de respeito democrático, incompreensível numa estrutura de princípio assente numa ideia de união, que vislumbro nessa atitude de indiferença que roça o desprezo para com os países que sabem não estar no centro político e económico das decisões europeias.

Hoje resolvi ir analisar as primeiras capas dos principais jornais mundiais. E quantos são os que fazem uma grande chamada à primeira página da Cimeira EU-África? Nenhum dos que eu vi. E há apenas dois ou três com notícias relacionadas com a cimeira, como a que faz referência sobre a intervenção da senhora Merkel em defesa dos direitos humanos no Zimbabué, mas em pequena caixa. De resto, são as notícias sobre assuntos internos os que mais motivam os editores, ou as notícias internacionais mas que envolvam interesses directos das nações onde os jornais são publicados. De provincianismo estamos conversados, a não ser que o provincianismo português seja de qualidade diferente só porque não é falado em inglês ou francês.
E depois digam que só os nossos meios de informação são paroquiais.
Mas que o nosso primeiro-ministro fala da paróquia e para paroquianos como se estivesse a falar para o mundo, lá isso. Quem o ouvirá?

sábado, dezembro 08, 2007

O esquecimento

Adivinhar-lhes o futuro, mudar-lhes o futuro, saber o que deviam fazer no futuro, eis tarefas que sabemos todos desempenhar: se do futuro estivermos a falar sobre o futuro dos outros, pois sobre o nosso...
As cimeiras só valem num mundo ordenado segundo a ordem da soberania tal como Bodin a explicou. Mas... e quando esses soberanos já não representam a voz dos seus cidadãos, e já não asseguram a protecção e a defesa do seu povo, podemo-los ouvir realmente como unidades na diversidade, ou apenas como unidades mais agressivas e proeminentes entre outras tantas unidades? Quem estão eles a representar e em nome do quê? Se não representam os seus povos, se de qualquer forma manifestada livremente não soubermos que essa é a vontade dos seus povos, como considerá-los representantes do que quer que seja, a não ser por nossa vontade de querer encontrar uma ordem na diversidade, mesmo que seja esta a ordem?
E no entanto, a falar falar-se-ia com quem? Como interpelar e preocuparmo-nos directamente com os povos, relativizando os seus governantes? Como deixar de precisar de batedores dos carros oficiais que transportam suas eminências os representantes do seu povo? Como deixar de precisar de eminências num mundo plural e livre?
Talvez a resposta nos venha dos estudos sobre a formação e divulgação da opinião pública.Talvez venha daí uma proposta nova de entender a política. Eu não sei nada sobre esse futuro. Quem me dera poder alvitrar alguma coisita. Uma ideia pequena que fosse. Se desejando esse desejo ajudasse em alguma coisa...

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Cimeira UE/África: Lisboa é quase, quase uma festa

Aspectos positivos para nós portugueses: ouvirmos tanto falar de África, e recebermo-la na nossa casa.

É uma alegria ouvir falar não só dos problemas de África, mas de África política e económica e dos seus valores morais e culturais, das suas pessoas, das suas propostas e dos seus êxitos. De repente vejo e ouço analistas políticos que nunca tinha ouvido, jornalistas africanos que raramente têm espaço na nossa rede mediática. Discursos inteligentes sobre África. Gosto que me falem do êxito do Mali, do modelo político de Cabo Verde, da adaptação aos modelos culturais europeus e das ricas tradições orais africanas e a sua relação com o poder político, numa redescoberta de normas assentes na honra e na palavra. Gosto que procurem explicações novas para os seus problemas, ao invés da incontornável, mas já estafada, porque daí já nada se pode fazer a não ser reconhecer os erros graves do passado, desculpa com o colonialismo.


Aspectos negativos: todas as ONG os estão a realçar muito bem. Lisboa é por estes dias não só um desfile de vaidades de líderes corruptos, autoritários e antidemocráticos, mas também um espaço de encontro de boas vontades e de consciências. Lisboa seria uma festa não fora os muitos milhões que não podem sentar-se a uma mesa para festejarem connosco.

quinta-feira, dezembro 06, 2007

"A falta de certificados de nascimento faz com que milhões de crianças no mundo não existam e que, consequentemente, não tenham acesso a qualquer tipo de direitos", sublinhou hoje em Lisboa o autor do relatório da ONU sobre a violência contra as crianças, Paulo Sérgio Pinheiro."
"Se uma árvore cair numa floresta e não estiver nenhuma pessoa lá por perto, ela faz barulho ao cair?"

Berkeley e toda a sua filosofia do conhecimento não chegam agora para responder a esta pergunta, sobretudo quando a acção provocada, e se quer em esquecimento, é provocada por um agente com essa intenção.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

"Padrões mínimos de vida, trabalho e tempos livres"

Desta feita, na sexta-feira do “Olha, afinal houve greve mas nem assim tanta!” a fórmula com que este governo, tal como já outros antes dele, destratam a informação e as indicações dos seus cidadãos, ou na sexta-feira em que o ministério da educação, mais do que qualquer outro antes dele, andou a telefonar para as escolas procurando impedi-las de encerrarem por falta de contínuos, eu fiquei doente. Andei a navegar toda a sexta-feira entre tremores de frio e vagas de suores, e mais do que ligeiramente alheada da realidade circundante. Não furei uma greve mas passei-lhe ao lado. Não sei onde aprendi que as greves são para se cumprirem como uma missão. Eu que não respeito o sindicalismo português da nossa conjuntura. São destas coisas.

Bom, entre as obrigações familiares, o sono intermitente, e nas horas em que o sino electrónico lá do campanário da aldeia, que tanto atazanou os meus dias de descanso e que se mudara agora para dentro de mim, me deixava o cérebro em silêncio, lá consegui avançar mais umas páginas na biografia de Churchill. Espanto. Eu que ignorava quase tudo da vida do biografado, que não tinha tido até ao momento nenhuma afeição especial pela pessoa, e que historicamente não me era, como nenhuma outra figura política o é também, muito querida, entro no capítulo “O campo social”. Entro e espanto-me. O que até aí me parecia uma personalidade oportunista, excessivamente centrada no seu voluntarismo, ainda que inegavelmente trabalhadora, intuitiva e corajosa, revela-se uma personalidade determinada por uma ideia de justiça social completa e inovadora, numa tentativa de equilíbrio na procura de uma política entre a prática capitalista e a prática socialista.

Churchill revelou-se um político original. Não que não leia os académicos, e se prepare no sistema de ideias novo, até porque é-nos dito como ele se encontrou com o prof. William Beveridge que dedicava a sua vida ao estudo de reformas sociais (p.158), mas é original no sentido em que aproveita realmente os cargos políticos que ocupa para fazer mudar a realidade a partir de ideias de reforma social até então nunca testadas ou aplicadas. Leia-se: “O seu funcionário mais velho, Sir Edward Troup, recordou mais tarde:”Uma vez por semana, por vezes mais de uma vez por semana, o Sr. Churchill chegava ao Ministério trazendo com ele um projecto venturoso ou impossível; mas depois de meia hora de discussão tinha-se desenvolvido qualquer coisa que continuava a ser aventurosa, mas já não impossível.” (p.178)
Sobre esta questão muito há a escrever ainda. Até porque é curioso como Churchill põe em causa estatutos e convenções económicas e sociais dominantes de uma forma aparentemente pacífica, mesmo contra a ideologia dominante e mesmo contra as teses de alguns dos seus melhores amigos, como John Morley que levara uma vida a estudar as questões sociais e concluira que nada se podia fazer para alterar o estado de coisas, no que à vida dos trabalhadores, dos pobres e dos desvalidos sociais dizia respeito.
Uma outra forma de reformar sem cair na revolução totalitária dos trabalhadores encontrou ele, revolução que ele intuiu ser inevitável a continuar-se a manutenção dessa absoleta e injusta ordem social e económica. As consequências de uma acção e de outra já conhecemos nós. Acredito que na altura estas reformas se parecessem demasiado com panaceias caseiras aos olhos de marxistas exigentes. E no entanto, a factura do futuro não iria ser a mesma para ambos os lados.

E estou a fazer batota, porque ainda não respondi a uma questão que ficou em aberto num outro post lá para trás, sobre quem tinham sido os autores de influência ideológica do Churchill, e como é que a experiência da guerra o forma numa perspectiva nova sobre a sociedade. E também porque já tendo terminado a leitura do livro de Delpech, era deste livro que devia estar aqui a escrever. Está a marinar, digo eu como eufemismo para o acto de preguiça.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

E no entanto...eles movem-se.

Intelectuais africanos e europeus atacam líderes políticos

"Africanos vencedores do prêmio Nobel e intelectuais deste continente e da Europa publicaram uma carta na qual atacam a "covardia" de seus líderes políticos por não incluírem os casos de Darfur (Sudão) e do Zimbábue entre os principais temas a serem tratados na conferência entre União Européia (UE) e África.
A carta, assinada por escritores como Vaclav Havel, Wole Soyinka, Nadine Gordimer, John M. Coetzee e Günter Grass, critica os políticos dos dois continentes por não enfrentarem "duas das piores crises mundiais" na cúpula de chefes de Estado e de Governo que será realizada nos próximos dias 8 e 9 em Lisboa. (...)" Ler o resto aqui.

O descontentamento pelos líderes está em em marcha uma vez mais. A caminho do quê? O que se pretende que aconteça com estas cartas, lamentos e declarações? Uma mudança de líderes ou uma mudança de atitude dos líderes?
Mas se as pessoas continuarem a ser escolhidas por algo mais para além daquilo que pensam sobre as políticas públicas, como teremos hipótese de decidir? E se não se decidir, alguém o fará e poderá querer fazê-lo para sempre. Ollemos o Sr. Putin ou os partidos que se eternizam no poder nas diversas formas que esse poder tiver para se manifestar ou em quem se manifestar.

Pela democracia

A análise da minha amiga analista política venezuelana revelou-se certeira. Dizia-me ela que os sinais que vinham das eleições das associações académicas universitárias, umas três semanas antes do referendo à reforma da constituição, iam na direcção de vir a existir pela primeira vez desde que Chávez chegou ao poder uma reacção em massa dos jovens de esquerda contra as intenções de Chávez. Faltará ver agora os números.
Como é sabido pelos venezuelanos, não foi a oposição a Chávez que ganhou sozinha, mas os apoiantes da democracia que ganharam, mesmo os que de entre eles apoiaram ou apoiam ainda Chávez.

E que a voz não lhe doa!

"Reproduzam-se portugueses!"

"Desculpem mas o tema é meu. Escusam de protestar e de ironizar, mas não vi muita gente a protestar na altura. Quando o governo quis punir por vias fiscais, creio, os casais sem filhos ou apenas com um rebento - não me lembro de ver a rapaziada a apoiar-me na guerra contra a política de repressão que visava os maus reprodutores. Para o Estado, os portugueses deviam reproduzir-se com mais regularidade e visibilidade. Era esta a mensagem "Tenham filhos. Reproduzam-se. O Estado precisa de filhos e de contribuintes." Quem não se entregasse às alegrias da paternidade, com os seus exultantes sacrifícios e as suas passageiras alegrias, estava em condições de ser punido pela máquina fiscal, ou discriminado face às famílias que tinham decidido multiplicar-se como mandam os evangelistas. Acontece que o Estado gosta muito da natalidade dos seus cidadãos, exercitando-se em teorias sobre a fraca taxa de reprodução do povo, quase sempre em jeito de queixinhas. Que as pessoas já não querem famílias numerosas (fazem elas bem), que não estamos a olhar bem para o problema da taxa de natalidade europeia (sei lá), que precisamos de mais filhos gerais para equilibrar a previdência, as contas do Estado, o que vai por aí fora. Depois, o argumento moral, que não falha os europeus não se reproduzem e daqui a umas décadas desaparecem. Portanto, resumindo, o que o Estado quer é que os cidadãos se "sacrifiquem" em seu nome, para reequilibrar as contas. Dito assim, parece uma cousa fracturante, do género "toca a reproduzir".



Depois de ter ensaiado uma forma de discriminação negativa das famílias pouco numerosas ou dos celibatários, o governo decidiu deixar a coisa no capítulo dos ensaios. O presidente da República voltou a falar do assunto recentemente, insistindo "no problema" e, quem sabe, no desaparecimento da raça, perguntando-se se os portugueses ainda sabem como se faz filhos. Ora, "o problema" é que a vida está como está, e ninguém de cabeça a funcionar com o mínimo de neurónios aceitáveis quer pensar nas suas obrigações reprodutivas em nome do Estado, da pátria e do futuro da nacionalidade. O Estado que tenha filhos onde quiser, mas não aborreça as pessoas com imperativos morais; o Estado é o último da fila quando se trata de questões morais. (...)
Francisco José Viegas escreve no JN