segunda-feira, março 31, 2008

Estados internos e externos

"(...) Nos Estados Unidos, o ambiente intelectual nos estudos sobre a democratização quase parece ter regressados aos anos 60: a ênfase voltou a ser colocada na "ordem" e no "realismo" políticos, nos pré-requisitos estruturais para a democratização e no pessimismo sobre a probabilidade de progressos a este nível. (...)"
Pedro Magalhães, "Cinco anos depois" in Público
"Acho espantoso que sobre a ocorrência na Carolina Michaelis várias opiniões insistam que a professora não devia ter entrado em "braço-de-ferro" com a aluna por causa do telemóvel. Não houve "braço-de-ferro" nenhum. A Professora recusou-se a capitular. Não deixou que lhe tirassem à força algo que, no exercício das competências em que está investida, tinha achado por bem confiscar. E não cedeu face a pressões selváticas. E não capitulou face a agressões verbais. E manteve-se digna no posto que lhe foi confiado pela sociedade, com elevação e consistência, cumprindo as expectativas depostas na sua missão. A Dra. Adozinda Cruz é um modelo de coragem que o país tem que aplaudir. Que a nossa confusa sociedade precisa de aplaudir porque é uma sociedade carente de pessoas como ela. A Professora de francês fez aquilo que tinha que ser feito. Sozinha. Porque trabalha numa escola onde o Conselho Directivo tolera que a placa com nome do estabelecimento, baptizado em honra de uma excepcional pedagoga que foi a primeira mulher portuguesa a conseguir leccionar numa universidade, esteja conspurcada, num muro com inenarráveis graffitis que mandam cá para fora a mensagem que lá dentro tolera-se a bandalheira. (...)"
Mário , Crespo, Jornalista,
"Não houve braço-de-ferro nenhum" in JN

sábado, março 29, 2008

Individual 3

Jakob é dado a estados de espírito. Sabe-se orgulhoso, não quer pedir ajuda. Da sua educação espera que lhe traga a beleza da lealdade e da dependência. As mesmas qualidades que viu manifestarem-se no mordomo da família que se arrojou aos pés da sua mãe a pedir-lhe clemência por um erro doméstico que lhe iria custar o emprego. Jakob Von Guten vai contar a dois colegas de escola o sucedido, sublinhando o momento sublime da cena do perdão da patroa. Os dois rapazinhos, dois pequenos republicanos, ficaram horrorizados com esse acto que entenderam ser de uma tirania patronal e de classe, camuflada sobre o manto das palavras: misericórdia pessoal.

Os colegas com quem partilhara a história deixam de falar a Jakob, repugnados pelo acontecimento que este vivera de forma estética sem questionar o estado social das coisas. E Jakob aprende para que direcção se encaminha a história: “Assim é: as atitudes aristocratas já não são toleradas. Já não há aristocratas, nem homens nem mulheres, que possam livremente fazer o que queiram.” Mas será que esse espírito do tempo está a perturbar a vida de Jakob? Tornar-se-á um reactivo aos novos ideias da sociedade? Ou juntar-se-á às massas nesse dealbar de um tempo social e político novo?
Nem uma coisa nem outra; a nossa introspectiva personagem Jakobiana diz-nos: “Aceito o tempo como ele é, e tenho apenas o cuidado de fazer as minhas observações em silêncio.” p. 70

Mas às vezes não é verdade que Jakob faça as suas observações em silêncio. Ele não utiliza apenas o seu diário para escrever sobre os mestres, os directores, os camaradas e sobre si próprio durante a estada no Instituto Benjamenta; estada que coincidirá com o percurso já perto do fim de uma vida desse círculo, e em tudo coincidente com o fim do próprio Instituto. Não. Ele provoca frequentemente o taciturno e aplicado Kraus, o aluno contável do instituto para todo o serviço que envolva responsabilidade e obstinação: provoca-o com as imagens por ele observadas ou que lhe passam pela cabeça. Ele provoca o director do Instituto, Herr Benjamenta, com o seu comportamento ora absolutamente controlado das suas emoções, ora em confissões francas sobre os seus desejos. Ele terá provocado a Fraulein Benjamenta com a sua civilidade, pois esta fá-lo única testemunha da sua verdadeira existência por detrás da postura da mestra rigorosa e exigente, fá-lo um ouvinte e assistente de uma dor profunda.

E quais eram os valores que o Instituto transmitia aos seus alunos e que levou Jakob a querer matricular-se neste estabelecimento de ensino em especial? Ele responde-nos com o traço que mais carecteriza a titude desenvolvida nos alunos da escola: “Uma coisa sei com certeza: esperamos! É este o nosso valor. Sim, esperamos, mantemo-nos alerta na vida, sobre esta superfície a que chamam mundo, sobre o mar com as suas tormentas.” p. 92

Enquanto esperam por uma colocação, por um emprego ao serviço de um cavalheiro ou de uma casa, o que lhes é leccionado nesta escola? Pouca coisa. Levam uma vida letárgica, com longas horas de ócio. As aulas concentradas de manhã, umas teóricas outra práticas, sendo que em todas a actividade privilegiada é a de desenvolver a capacidade de aprender o que quer que seja de cor, por isso se ensinam poucas coisas. O lema da escola é: “Pouco mas bem”. p. 63
Nas aulas práticas ensinam-se comportamentos de cortesia social, nas teóricas aprendem-se as regras, a obedecer às leis e a aceitar as restrições que uma futura vida de servente exigirá.
Mas.. e para Jakob, o indivíduo que se sente acima desta atitude? O que ganha ele com este amesquinhar da natureza singular que o Instituo parece querer fazer impor aos seus alunos, quebrando-lhes o orgulho? Este rapaz que descreve o mundo e a si próprio como poucos, o que espera ganhar com esta educação restrita e empobrecida de conteúdos?

quinta-feira, março 27, 2008

Individual 2

Jakob Von Guten inscreve-se no Instituto Benjamenta, propriedade dos irmãos com o mesmo apelido: o senhor director Benjamenta e a Fräulein Lisa Benjamenta, mestra na escola.

O rapaz não é rico, mas podia ter vivido placidamente como se deveras o fosse, por reflexo em si de uma situação desafogada economicamente dos seus pais, ainda que não tão extensiva que desse garantia de segurança financeira ao futuro da sua prole, no caso de esta ter resolvido viver de rendimentos familiares. Guten não o faz. Pega no dinheiro necessário para o pagamento das propinas e dirige-se ao Instituo Benjamenta para se educar a si próprio num registo ao rés-do-chão do espírito social.
Guten, tu não estás aí para aprender a ser um líder, um patrão, um homem de sucesso na escala social burguesa, mas um criado? E assim, aprendendo o que terás que interiorizar para cumprires com perfeição o teu mister, que te compelirá para o apagamento dos teus traços mais alcandorados à vaidade, à empáfia ou à imodéstia, alcançarás um conhecimento real sobre ti. É o que pensas, Jakob?

Eu considero que esta inscrição de Jakob Von Guten no Instituto Benjamenta representa o método que a personagem de Walser encontra para cumprir o desígnio socrático: “Conhece-te a ti mesmo.” Ele vai à procura desse objectivo de vida.

Mas o conhecimento de nós próprios não é coisa que se possa iniciar ou retomar ou empreender de ânimo leve, e jamais de uma vez para sempre é dado e adquirido o que dizemos conhecer de nós. Não o era em Atenas do século V. aC, não o era na primeira década de vinte. E ainda os tempos estavam oscilantemente serenos no palco político internacional nesse ano de 1905; pressupondo que Guten se estará inscrito no Instituto Benjamenta no ano em que o seu autor editou o livro, façamos esta simpatia literária.

O rapaz oscila entre o desejo de servir outrem, como meio de aprendizagem, quem sabe, de poder vir finalmente a conhecer-se relativamente ao que é mais próprio da sua natureza, realizando o seu próprio percurso de iniciação ao auto-conhecimento assente em modelos de paciência e de anulação da vontade personalizada, e esse outro desejo ser rico e de se libertar definitivamente dessa tarefa em que se inscreveu e que às vezes o faz tremer de medo e de asco perante a hipótese de vir a ter um futuro irrisório, servindo medíocres senhores, que lhe provocariam asco e tudo isso pela sua opção tomada num dia em que estava consciente do seu objectivo de vida.
O rapaz é um enigma para ele próprio, como nos diz. É uma coisa e deseja outra, tem a outra e quer ser aquela, não tem nada e não deseja nada, não sabe o que tem e o que deseja, sabe e quer o que tem e o que é. Por dias. E não, não é coisa para ser explicada pelo spleen de Monsieur Baudelaire. Então o que é?
....
Ouvi Amin Maalouf a ser entrevistado no programa "Sociedade das Nações" e pensei: - Sempre há intelectuais de grande ingenuidade argumentativa...
Ora ainda bem, no meio do realismo pragmático que pulula, alguém nos faz sorrir. Sem paternalismo no juízo. Não sei porque senti necessidade de acrescentar isto.

Nosso leal, bravo povo, sempre pronto a cumprir o seu dever a qualquer custo

Li na página quatrocentas e quarenta e duas da biografia de Churchil, já aqui profusamente citada (e nem sempre pelos melhores motivos), o seguinte: “Não guardo ressentimentos ao nosso leal, bravo povo, sempre pronto a cumprir o seu dever a qualquer custo (...)”. Parei imediatamente de ler, impedida por qualquer sentimento forte, logo após o parágrafo que aqui cito de forma incompleta.

Churchill escrevia aquelas palavras após constatar a alegria exibida nas ruas e nos fóruns do povo britânico pelo acordo que Chamberlein, que ocupava então o cargo de primeiro-ministro, alcançara com Hitler e que permitira a este anexar partes de Checoslováquia sem a reacção inglesa a comandar uma possível punição via Liga das Nações, tal como Churchill defendia.
Reparo e penso : - “Há quanto tempo os portugueses não ouvem palavras de apreço, sobretudo se ditas por alguém que viu em tudo ser contrariado por esse mesmo povo, alguém na oposição mais solitária, palavras que não visam apenas o voto em período eleitoral, mas ditas com verdadeiro sentido do estado e do povo em que se está? Há quanto tempo?”

Fosse Churchill um comentador político português da nossa época e tinha zurzido moralmente no carácter de tal povo que se entregava a folguedo em vésperas de um desenlace trágico na política internacional para o qual não estava a preparar-se nem a querer fazê-lo. Teria elevado o seu dedinho indicador e em voz grave, ou com pena moralista, socando o povo com epítetos bem castiços e ácidos. E no entanto, este, como qualquer outro povo, faz exactamente o mesmo quando lhe é pedido sacrifício, lealdade e bravura. Quem lho diz?

O que nós temos são discursos propagandeados e falseados da realidade social e política vivida , via gabinetes de agências de comunicação, ditos por uns, ou discursos de maledicência contínua, de menosprezo constante, de apoucamento sistemático, pejados de ressentimento por tudo, até por respirarem neste canto ocidental, por outros.

E noto que não nutro uma especial simpatia pelo fenómeno Churchill, apenas sublinho com apreço o registo discursivo e a acção em relação ao seu povo que contra si se manifestava. Relevo a diferença, pois a passagem dos tempos não ajuda a explicar este diferendo entre governantes e governados. Pelo contrário.

quarta-feira, março 26, 2008

Individual 1


Não sei como não tinha conhecido antes Robert Walser. Não é propriamente como não conhecer um autor contemporâneo. Walser escreveu Jacob Von Guten na primeira década do século passado. E este livro influenciou autores que eu li e conheço, talvez possa dizer que bem, como Musil, Benjamin ou Kafka, como nos indica a editora em contracapa.
Então porque não o tinha lido? E se este autor escapou, quantos milhares deles não terão igualmente escapado ao meu cânone? Não é que eu tenha a pretensão de ser uma excelente leitora ou de sistematicamente conhecer as obras e os autores que podemos já hoje considerar clássicos e que escreveram no fim do século dezanove princípio do século XX; não. Ah, pois não! É certo que qualquer leitor mais metódico daria conta em poucos segundos da minha ignorância, mas na realidade vivo na semi ilusão de que li e reconheço as principais obras dessa época e que foram traduzidas em português. Daí que Robert Walser seja o Copérnico do meu sistema literário. Quando um afiambra-se com as ilusões que mais o pacificam.

A mim surgiu-me pela mão desse extraordinário rapaz, Von Guten, ecos do texto de Broch, A morte de Virgílio, e de Musil, O homem sem qualidades. Não sei quem escreveu primeiro o quê, e não vou querer saber porque não estou aqui a fazer crítica literária, nem a escrever um ensaio, estou a reconhecer as afinidades linguísticas e temáticas que o livro de Walser me provocou, e cujas ressonâncias procurarei dar conta em tempo oportuno. Porém, para dar conta dessas ressonâncias vou ter que saber quem influenciou quem, ou que formas de vida circulavam nesse espaço de fim de século e primeiras décadas de outro. Pronto, é mais um post sobre mim e as minhas dúvidas, aviso no caso de haver alguma fantasia de que vou escrever sobre o livro.
E no entanto é precisamente sobre o livro que vou escrever.

Jakob Von Guten é um filho de famílias afortunadas socialmente, a quem ele intitula de parentes honrados, mas um filho que rapidamente reclama por uma educação que ele próprio seguisse. Não é que Jacob conteste a tradição, as leis ou Deus, mas entende ser sua missão na vida procurar a educação que melhor o pregaria para a vida, e essa, entendeu-o ele, não seria a educação académica, assente em conhecimento livresco, nem a educação dos salões que seduziam a sua sensibilidade estética mas baralhavam a sua tarefa ética, também não seria a de manter-se sob o jugo das influências dos conhecimentos sociais ou do poder económico. O jovem Von Guten aspira por seguir um percurso de vida determinado por si. E como o faz ele? Pondo-se na posição de aprendiz numa instituição vocacionada para ensinar rapazinhos a serem servidores de cavalheiros. Um aprendiz de serviçal, para se poder, sobretudo, tornar senhor de si.

Hegel, o bom filósofo da dialéctica do par senhor/escravo, percebê-lo-ia muito bem.

colectivo

Há a esquerda e a direita ideológica em termos de valores relacionados com o poder administrativo e económico, mas verdadeiramente parece-me que só existem democratas e não democratas no que a valores civilizacionais e sociais diz respeito.
Cada vez me parece mais que pessoas com valores cujo eixo existencial gire à volta do conceito de liberdade e de equidade, podem ser de esquerda, de direita ou de Marte, porque a linguagem é a mesma, e um mesmo sentido pode nascer da sua acção. Um jogo de linguagem não é só um código partilhado, é uma forma de vida que não pode assumir-se como excepção na vida pública, porque a debilidade ou o improviso ou a hesitação de um indivíduo é alancada por toda a vaga seguinte que reforça a coesão à volta de uma prática idealizada numa linguagem e que algumas comunidades a afectaram colando-a à sua tradição, dizendo-a de sua natureza, quando ela é transnacional, porque criada como princípio universal de regulação da acção social dos povos sem excepção: à liberdade, digo eu.
Quando Portugal tem um peso internacional relativo, quando as políticas económicas, agrícolas, financeiras, ambiente, de defesa e segurança, são impostas pelo parlamento europeu, o que nos fica é a gestão de assuntos de economato doméstico, de regularização dos comportamentos que promovam a corrupção, de logística financeira, e sobretudo, de exploração da nossa identidade. Como essa tarefa está por cumprir, como sempre o estará enquanto houver tempo, Portugal continua a precisar de visionários que empurrem os técnicos para a jornada seguinte da nossa existência colectiva, sendo que o método de investigação não tem que inventar de novo o que já foi inventado e deu bons resultados em termos de satisfação geral da existência. Para onde se poderá encaminhar eu não sei, não sou visionária, mas fico à escuta das razões que possam surgir, e não serão razões tecno-buracráticas de definirão o nosso lugar no mundo tendo os pés bem assentes nesta terra.

Um dia destes, no 2º canal, o Arquitecto Ribeiro Telles foi entrevistado a falar com um dos agricultores urbanos que aproveitam os terrenos baldios para, às portas das urbanizações massificadas, semearem, plantarem e colherem da terra alguns produtos que muitos, mais pelo gosto de cultivar que de necessidade, outros muito mais por necessidade do que por gosto, se dedicam a fazer. Quando o senhor se aproximou de um cavador, este que ali estava a cavar, conheceu-o imediatamente, atirou a enxada para o lado, endireitou-se e parou para o cumprimentar. Falam a mesma linguagem, respeitam-se.
Já os outros arquitectos convidados falaram desses terrenos do alto da sua sapiência, um no seu gabinete, outra no meio de uma rua aberta ao trânsito.
Uns falam de ouvir dizer e de ver de longe, outros falam com os pés na terra a olhar os olhos de quem conhecem as práticas e os hábitos. É mais do que uma questão de confiança que o arquitecto criou com esses cidadãos, é uma lição de política.

terça-feira, março 25, 2008

Uma questão de poder e do seu questionamento

"(...)
O Dalai Lama do Tibete tem sido um mensageiro mundial da paz e reconciliação, para além da destruição desmedida que foi causada pela invasão chinesa em 1959, uma atitude consagrada no Ocidente pela atribuição do Prémio Nobel.
Mas a autenticidade ocidental nesta questão tem sido muito discreta.
Foi necessária a defesa da concorrência leal nos mercados para que a crítica às condições dos trabalhadores na China aparecesse a exigir respeito pelos direitos sociais.
O mesmo não aconteceu quando do massacre de Tiananmen, que orientou para as discretas inquietações em privado, da parte de líderes ocidentais ao visitar Pequim.
A atitude afoita que reinventou e lançou o protectorado para o Kosovo vai continuar a semear inspirações separatistas em vários lugares, talvez presentes nesta insurreição dos tibetanos.
Mas essa criatividade vai seguramente ser refreada, mesmo no Conselho de Segurança, se a questão chegar à agenda. O poder tem uma relação desequilibrada entre a arrogância e a prudência, dependente da identidade do agressor."

Adriano Moreira, "A questão do Tibete", no Dn online

Pois, a identidade do agressor em acções em que o direito internacional está a ornamentar dicursos faz variar muito a reacção à sua pessoa. Lá isso faz. É a ideia de poder como equivalente a impunidade. Um sonho para ditadores e para irresponsáveis.

sexta-feira, março 21, 2008

A criação maniqueísta de realidade: um tipo de governo

Parece que o país dos comentadores políticos, os mesmos que se grudaram no tipo de acção do poder em acção, como Constança Cunha e Sá tão bem escreveu no Público desta semana, só hoje descobriu o tipo de comportamento continuado dos infantes portugueses na sala de aula para o qual os professores tanto têm alertado e sobre o qual só o Procurador Geral da República teve uma palavra a dizer, porque este Ministério da Educação, exclusivamente interessado com as questões laborais e económicas, nunca teve uma orientação sequer sobre os valores cívicos a serem aplicados, nem se mostrou implacável na defesa do trabalho dos docentes como o fez atacando o seu poder.

O que o vídeo hoje exibido à exaustão mostrou é apenas uma leve amostra do que acontece quotidianamente em todas as escolas deste país. Já aqui o disse, mas vale sempre a pena repetir, até porque, como se viu, muitos professores calam publicamente a indisciplina de que são vítimas, interiorizando muitos deles uma qualquer culpa no desempenho do seu papel. A oposição também parece só acordar para estes assuntos em cima deles. Que tristeza está o nosso parlamento. Que atrofio.

Escreve o filósofo José Gil na revista Visão desta semana: "O corte com a realidade leva à convicção de que há só uma razão (a do chefe: as suas razões são a Razão), uma só via ("não há alternativas"), um só mundo (o mundo sonhado da efectivação da política única). A teimosia gera intolerância, a intolerância alimenta-se de um pensamento pobre e maniqueísta: ou preto ou branco, ou comigo ou contra mim. Clinicamente, estamos perto do delírio. Com múltiplas tentações paranóides. Governa-se como se a vontade do povo descontente quisesse a morte (a queda) do Governo. Como se a população fosse contra, radicalmente contra o poder. O que leva, por reacção, a governar contra o povo.
Um exemplo claro: quem examina seriamente, em pormenor, este modelo de avaliação dos professores e as condições da sua aplicação fica com a forte impressão de que os seus conceptores estão fora da realidade. Da realidade do que é a escola, do trabalho dos professores, da sua relação de aprendizagem com os alunos. E, depois da manifestação, não houve "recuo da ministra": a rigidez continua, apesar dos "ajustamentos" prometidos. (...)", p. 28.
Já cheguei a ouvir um psiquiatra e um jornalista muito conhecidos que evocavam o livro de José Gil Portugal Hoje - O medo de existir, precisamente contra as actividades dos professores logo após a manifestação. Como se a ausência do carácter da inscrição, que Gil destaca como sendo um traço da debilidade social e individual de Portugal, estivesse na qualidade da manifestação dos professores que estariam a subtrair-se perfidamente ao poder do poder legítimo, e não a lutar por outro tipo de orientação política, de outro tipo de exercício de poder, que não fizesse da realidade um simulacro da lei feita em gabinete à margem de todo o conecimento efectivo do que é a escola/sociedade portuguesa.

quinta-feira, março 20, 2008

Um estado do mundo temperamental

Um ano, cinco anos, um século, um dia, nove meses, quatro anos.
Os seres humanos a darem sentido ao tempo, agindo ou reagindo àquilo que a pessoa ou a pessoa dos outros faz nesse tempo.
Para que a acção individual seja entendida como força de intervenção efectiva as instituições terão que acordar entre si, reflectindo-a. É isso que as organizações nacionais devem fazer nos assuntos internos de cada país democrático, e as internacionais no que diz respeito às questões de relações entre países; surgindo até a hipótese de pela primeira vez, e no contexto de direito internacional, as organizações não nacionais poderem intervir em cada país em nome precisamente de princípios reconhecidos internacionalmente.
Quando se põem em causa esses princípios ficamos à mercê dos temperamentos dos nossos governantes, e estamos sujeitos às suas arbitrariedades mais ou menos legitimadas pelo voto. Mais, porque o voto tem força de legitimação inquestionável, menos porque essa legitimidade não é suficiente para suportar qualquer acção administrativa/política.
Deste lado pacífico do mundo, cinco anos da minha vida não equivalem a cinco anos da vida de uma iraquiana, um dia dos meus não equivale a um dia da vida de uma habitante do Darfur, ou do Quénia, ou da Coreia do Norte, ou do Tibete ou da Birmânia, e o mais que há. Aliás, nem uma hora das minhas equivale à hora de uma mulher que viva aqui mesmo ao meu lado e esteja em sofrimento por razões de ordem pública.
De reacção em reacção, perdemo-nos do sentido de intervenção democrática, começamos a reagir aos acontecimentos como os líderes: temperamentalmente, em círculos.

terça-feira, março 18, 2008

A arte de negociar

Uma amiga dizia-me que Sócrates é o homem mais bem preparado tecnicamente para governar, e dava-me como exemplo a rigorosa pretação discursiva de todas as suas intervenções públicas, assim bem como o controlo evidenciado sobre toda a informação emanada dos diferentes ministérios. Mas eu perguntei-lhe se os portugueses tinham votado num director-geral para gerir uma empresa pública ou num político. Discutimos o conceito de política e acordámos que Sócrates é um péssimo político, desde que por este se entenda um negociador para dirimir conflitos e diferendos que o exercício e o uso do poder inevitavelmente provocam. Mas acordámos que o primeiro-ministro é um óptimo gestor, sobretudo da sua imagem. Reflexos e cruzamentos entre uma certa ideia de estado, de governo e de poder.

A minha amiga é capaz de olhar a realidade de frente. Pelo menos eu acho, penso até que ela está muito melhor preparada metodologicamente para o fazer do que eu alguma vez estarei, que a olho, frequentemente, a caminho de nem sei o quê. Eu na realidade a maior parte das vezes não queria era saber da realidade para coisa nenhuma, desta descrição política e social tal como ela me é servida nas notícias. E no entanto, também não consigo fazer de conta que não vivo aqui. E penso: - só devia pensar sobre literatura, ou poesia, ou cinema, sobre teoria filosófica e sobre história, e ler poesia e as crónicas de Lobo Antunes. Só.
Mas qual o quê, esborracho o nariz contra a vitrine aberta para a nossa realidade política-social e fico ali em palpitações, oscilando entre a náusea e a crença, entre a negação e a afirmação, entre o cansaço e a acção, entre a impotência e a sensação que não se é capaz de compreender o que tem que ser compreendido. Daqui só se sai por comoção forte ou empenho criativo direccionado. Eu fico a olhar. Qual estudo empírico, qual o quê.
É engraçado como imagens diferentes se cruzam no cérebro quando se escreve uma coisa e se intercepta uma outra forma de ter sentido o mesmo. Agora lembro-me de muitas das histórias que li ou vi de seres completamente desprotegidos no mundo, histórias que se cruzaram comigo: e que me fizeram? Imagens fugazes do que imaginei quando li sobre a menina vendedora de fósforos, sobre os operários perseguidos de Gorki, ou ainda sobre os judeus desalojados de suas casas e separados das suas famílias, e também sobre os pequenos dos Esteiros, ou ainda sobre o Zezé e o seu pé de laranja lima.

-Queres que eu te leia a história do Zezé?
-Não mamã, essa história é muito triste.

domingo, março 16, 2008

Três anos de Sócrates no governo

Há muita gente que vocifera contra o sistema italiano, instável por natureza, segundo o seu registo histórico. Eu sempre disse, quando nos acusavam de estarmos a seguir o modelo transalpino, que ainda iria ter muitas saudades desse estado de coisas absurdamente democrático. Absurdamente democrático.
Como este sentimento já o manifestei, que me lembre, durante os mandatos de Cavaco Silva, só pode ser um problema meu com certas figuras/atitudes políticas. Ainda bem que é um problema meu e não um problema do país, como revelam as sondagens. Assim como assim, eu que resolva a questão comigo mesma.
Mas será um problema só meu? Cinco meses após a tomada de posse deste governo e eu já achava que não. Enfim, pode não ser absurda, mas sempre é uma democracia, apesar de tudo. Uma espécie de democracia. Com algum desprimor. Mas também reconhecer é mais difícil que maldizer. O problema é quando não é um maldizer mas um sentimento forte de rejeição pelas teorias e práticas apresentadas. E depois? Não há eleições? Há. E eu já só penso nelas. Mas também... talvez se apresente alguma forma absurda da democracia se promover.
Isto só pode ser um problema meu, afinal não temos estabilidade? Temos. Não ando sempre à procura dos fundamentos para tudo e mais alguma coisa? Sim. Logo...
Mas eu posso questionar os fundamentos que fundamentam esta política. Assim eu o soubesse.
..
Pessoa amiga conta-me o que se passa com os programas Polis deste país. Embasbaco. Eu embasbaco sempre com a inteligência privada a servir-se de dinheiros públicos de forma despudorada. Devia dizer de forma desonesta. Não é só uma questão imoral, porque esta coitadinha mal sai dos livros antigos de filosofia e dos catequismos, é uma questão de ilegalidade. Um dia há-de resolver-se, e o contínuo há-de ir preso. Já me esquecia, isto pode ser um exercício de absurdo de uma democracia oligárquica. Pode.

sexta-feira, março 14, 2008

Resposta a uma observação crítica: os professores e o sistema económico e social

Através do meu/minha interlocutor/a do blog DIACRIANOS pude ler pela primeira vez um texto do autor Dany-Robert Dufour, autor que eu não conhecia e cuja referência agradeço desde já.

O excerto ali transcrito é interessante sobre todos os pontos de vista. De certo modo é um texto inscrito na linha das análises sociais desenvolvidas pela Teoria Crítica das acções sociais. E qualquer pedagogo o deveria poder ler, sobretudo porque Dufour não se limita a descrever e a interpretar as causas e os efeitos das pseudo teorias da educação que têm destruído a escola pública de massas, não se fica portanto pela reflexão sobre as coisas como elas estão a querer ser e a diagnosticar as origens desse fenómeno, mas porque insiste na ideia que aquela escola que quer ser entendida como a que forma as “elites” continua a manter exactamente aquele modelo de ensino “arcaico” que as teorias pós-modernas da educação propõem alterar em absoluto nas escolas de massas.

Logo, não foi o modelo de educação antigo que se esgotou, foi a vontade de alguns governantes com responsabilidades nas áreas que propuseram a alteração do modelo para que melhor se respondesse aos interesses económicos-culturais da época presente, e isso através de uma moldagem absoluta de todos os meios de socialização em função dessa finalidade, sendo que depois, paradoxalmente, esses mesmos interesses precisam de continuar a formar e a integrar as elites que venham aplicar e desenvolver o modelo, sendo elas no entanto formadas de “fora” desse modelo social e cultural implementado.

Como não estamos num registo teórico que se reconheça pertencente ao domínio das teorias da conspiração, só podemos registar que o sistema de educação actual tende a ser reorientado para satisfazer o mercado de trabalho, ou, enquanto destas forças não houver necessidade, para as manter enquadradas e entretidas numa instituição, por uns quantos a quem este modelo de socialização convém, mas aqui entra-se no limite da intriga paranóica reflexiva, ou , alternativa mais plausível, este modelo é defendido por todos os que crêem nas virtudes do actual modelo económico/social e defendem de facto ser este o caminho para o futuro da sociedade, adaptando-se assim às circunstâncias históricas, ajudando à sua divulgação e implantação universal. Isto é, crêem profundamente que a escola de massas, geralmente a escola pública e muitas das instituições privadas, devem mudar de paradigmas de educação, deixando ficar para uma meia dúzia de instituições o trabalho de continuar a reproduzir o sistema antigo que forma alunos com capacidade crítica e reflexiva

Reconhecendo o fenómeno pela experiência que tenho do sistema de educação público, e constando que muitos dos nossos alunos são realmente “filhos da televisão” e que desejam que nós professores continuemos a ser os seus entretenimentos, eu pergunto-me: a escola dita “arcaica” poderia realmente a ser uma resposta para esses alunos?

Vamos lá a ver, não é que eles nasçam com competências cognitivas atrofiadas, não é que o sistema cultural dominante os determine como incompetentes para um sistema baseado no modelo clássico de ensino-aprendizagem comprometido com o modelo que pressupõe a autoridade científica do professor numa consequente transmissão de saber, o que eu me pergunto é o que fazer com a elevada taxa de abandono ou de reprovações que afectam realmente esse sistema? A solução passaria pelo quê, a montante: desligar o televisor? Incentivar outras formas primárias de socialização (manter a criança em idade pré-escolar num grupo reduzido de crianças com um ou dois adultos presentes para orientarem a formação social)? Restabelecer regras de disciplina mais formais nas instituições ou nas famílias? Responsabilizar as famílias pelo comportamento dos alunos? Mas como? Culpabilizando-os? Formando-os? Como?

E a jusante, passa a solução por manter o sistema “arcaico” para todos e distingui-los depois num determinado momento do seu percurso escolar (como se faz no exigente estado da Baviera) entre as várias escolas com níveis de exigência diferentes? Mas não estará aqui também em causa as desigualdades da origem social a condicionar esta decisão?


Critica-me o/a a interlocutor/a a minha ingenuidade quando eu reclamo para a escola portuguesa a continuação do papel central do professor como sujeito de trnasmissão de conhecimentos e de saber, como se isso fosse possível numa sociedade que pretende copiar todos os modelos de um capitalismo desregulado, e num sistema que trucida a qualidade e o esforço, a diferença e o mérito de todos aqueles que se lhe opõem, ou que contariam o seu movimento. É certo que o sistema é nivelador, e que com esta nova reforma da educação ainda mais rasteiro se manterá a formação de consciência dos alunos que tenderão a compreender que façam o que fizerem terão sempre um certificado na mão e que os melhores de entre eles, os que mais se esforçaram nem sequer terão garantias de que o seu trabalho será recompensado, numa sociedade que se estratifica cada vez mais numa rede social de conhecimentos e de influências familiares ou de meio social que dificulta a progressão económica e social. Eu sei. Lecciono em vários níveis do ensino, e sei o que os meus melhores alunos, e alguns são estrangeiros, muitos vêm das nossas antigas colónias e querem estudar connosco, não conseguem fazer quase nada com o seu mérito em Portugal.

Porém, sabendo tudo isto, não posso concordar que a escola seja ainda uma pequena parcela no processo de aculturação, não ainda, ou não de forma absoluta. Quem lá está sabe que muitos dos alunos, do básico ao secundário até ao universitário, estão lá para ver “passar o comboio”, mas muitos outros estão presentes e aprendem com os seus professores, ainda os reconhecem como autoridades no saber.
Serão cada vez menos, mas ainda os há que trabalham muito, que querem aprender. Eu conheço-os, passam alguns à minha frente, e sei que este sistema de educação, esta reforma, mesmo a universitária, não é feita em seu nome. Eu sei que é pouco significativa esta minha experiência, ainda para mais porque eu lecciono maioritariamente para adultos, mas ela não é única no meio onde circulo, e não pode ser por si uma expressão sem significado ou sem valor estatístico.
Porém, como me disse, a verdade é que: “Os docentes apanham os papéis que lhes atribuem os intermediários das burocracias locais.” E sobre isto eu tendo a não conseguir ponderar de forma suficiente.
Esta crítica reconheço-a como válida. Somos actores (sou) num sistema que não dominamos e que de certa forma ajudamos até a perpetuar em nome de um emprego para a vida. Reconheço.
Mas ainda assim, ou será por isso mesmo?, e com quase todos os ditos "líderes de opinião" a fazerem uma campanha cerrada contra o movimento dos professores, com quase todos os editores de jornais a manifestarem-se a favor da ministra, os professores movimentam- se diariamente à procura de formas de discutir estas reformas, dizendo o que sobre elas entendem. E não nos esqueçamos que os professores não têm uma Ordem profissional, mal têm associações, sendo a maior parte criadas recentemente, e que são muito individualistas pela força do seu trabalho que os torna especialistas numa determinada área do saber/actividade e não os faz propriamente políticos da educação, apesar de muitos terem mais anos de formação e de competência científico-pedagógica do que qualquer um dos seus governantes na área.
É claro que nada disto obsta a que já devessem ter tomado uma posição relativamente aos valores que (não) estão a ser reproduzidos por si. É claro.

Uma notícia preocupante

"Pequim, 14 Mar (Lusa) - A tensão no Tibete aumentou hoje com dois monges a tentar o suicídio e as autoridades chinesas a fechar mosteiros após três dias de manifestações contra a administração chinesa na capital, Lhasa, divulgaram organizações internacionais pró-Tibete."

Por um Tibete Livre!

quarta-feira, março 12, 2008

Ora aqui está uma boa notícia.

"O ministro da Defesa anunciou, esta quarta-feira, que Portugal será um dos primeiros países a enviar tropas para o Chade, ao abrigo de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. A missão, que visa apoiar os refugiados do Darfur, custará qualquer coisa como 2,2 milhões de euros."

"O poder da "Rua"

"As impressionantes manifestações registadas nas últimas semanas, e continuadas um pouco por toda a parte, assumem a forma e o conteúdo de um severo depoimento contra o Governo. Não se trata de turbulências comunistas, como já o disse José Sócrates e, iradamente, o repetiu Augusto Santos Silva, cujas "verdades" surgem cada vez mais avariadas. A "rua" foi a demonstração categórica do desequilíbrio entre quem pensa em termos estatísticos e quem é vítima desse equívoco. E uma vigorosa afirmação de civismo. Há dias, conversei com Raul Solnado sobre a natureza do Estado e o domínio pelo domínio exercido, repetidamente, pelo Governo, esquecido de que a força da República é a virtude, e a sua fraqueza a soberba. Sobre ser um amigo de há mais de 40 anos, Solnado é homem sábio, de frase pensada e advertida inteligência, com quem apetece discretear. Disse: "Gostaríamos de sentir que este Governo tem vontade de transformar e de modernizar o País. Por outro lado, a sua arrogância e autismo quer arrastá-lo para uma democracia musculada, o que é assustador. Eles distanciaram-se de nós."

A tentação de se construir contra o outro destrói o laço social, fonte e apoio do tecido colectivo, assinalado por Solnado como silogismo. E essas regras perturbadoras têm por objectivo limitar a interferência cívica e proteger o autoritarismo governamental. O facto de este Governo dispor de maioria absoluta não significa que actue em absolutismo. Há, manifestamente, ausência de diálogo e um poderoso dispositivo autoritário que liquidam a coexistência de duas sinalizações fundamentais em democracia: a dos governantes e a dos governados.

Perdeu-se de vista o reconhecimento da igualdade, do direito de protesto e do dever de memória. Este Governo criou uma tensão dramática de tal ordem e um destempero de tal jaez que levaram o primeiro-ministro a afirmar-se indiferente para com a imponente manifestação dos professores, invocando uma "razão" cuja natureza só poderá ser explicada através da nebulosa em que ele parece viver.

A arrogância é uma deformação moral; o preconceito, uma doença de educação; o desdém, uma chaga de quem se presume superior. Sócrates criou uma criatura que escapou ao seu controlo. Não pode mudar: de contrário, deixa de ser quem julga ser. E, sendo-o, na obstinação de quem não tem dúvidas, perde o respeito daqueles para os quais a democracia não existe sem comunicação.

Ao contrário de alguns preopinantes, suponho que, se a ministra da Educação fosse embora, abrir-se-iam as portas ao diálogo. Porque (é inevitável) irão aparecer novas regras de jogo e outras instâncias de organização que terão em conta as específicas oscilações históricas. Nascidas, não o esqueçamos, da "rua"."

Baptista-Bastos, O poder da "rua", no DN de hoje.

Isto leva-me a perguntar, quem tem que ficar assustado com a ideia de desobediência civil que desta força possa ocorrer? Isto é, quem tem medo da desobediência civil numa sociedade democrática e mesmo com um governo sufragado por uma maioria absoluta?

terça-feira, março 11, 2008

Espiral de cinismo 2

Que isto seja notícia de jornal é mais que aceitável, mas que o seja nos termos em que o foi é que é discutível, sobretudo quando se cita as palavras de Paulo Pinto de Mascarenhas. É que aqui o jornal abre-se à hipótese de tratar um acto voluntário de expressão livre de opinião e de manifestação de solidariedade para com os seus colegas de uma pessoa, de forma cínica.
As pessoas não são livres de manifestarem as suas opiniões sem que isso seja logo entendido como uma forma de estratégia para jogar com as várias hipóteses de chegar ao poder para si ou para interposta pessoa a si ligada?
As pessoas agem sempre segundo cálculos políticos e pessoais de conquista de poderes? Que cinismo tramado.

Espiral de cinismo 1

Penso que já aqui escrevi sobre o livro de K. Hall Jamieson e J. Capella intitulado Spiral of Cynism, The Press and the Public Good , em português podia ser traduzido por algo como Espiral do Cinismo, a Imprensa e o interesse público. A tese principal dos autores é que o cinismo (que está para além da classificação de uma reacção realista ou céptica aos acontecimentos, discursos ou pessoas) tornou-se epidémico como atitude de análise da política, fazendo com que toda e qualquer acção seja entendida à luz de um interesse, de uma qualquer estratégia, que não em nome do bem comum.

Ao mesmo tempo que se perguntam sobre se será justificada a falta de confiança do público nas suas instituições, os autores procuram saber qual a origem desta reacção cínica e quais as suas consequências sociais. Eles concluem que a generalização de uma perspectiva do enquadramento jornalístico das notícias segundo o princípio da estratégia, do estudo dos efeitos sociais dos enquadramentos jornalísticos junto do público a partir de análises que se baseiam sobretudo em destacarem os elementos da sua própria competição quotidiana, na promoção do conflito, o artifício dos desempenhos, as motivações ocultas e o interesse pessoal, é a causa principal daquilo que produzirá no público a sua reacção cínica relativamente aos governantes em particular e à política em geral.
Assim, notícias estratégicas motivariam respostas cínicas. No sentido em que o "enquadramento jornalistico é uma forma de induzir a um determinado tipo de compreensão acerca dos acontecimentos noticiados." p. 85.
Então, o acontecimento que é coberto é tão importante como a forma como é feita a cobertura, logo, provaram eles, o cinismo na abordagem às notícias provocará cinismo na recepção das notícias, entrando-se num dinâmica auto-destrutiva. Assim uma espécie daquilo que o Ministério da Educação fez com o seu discurso sobre a educação. Adiante.
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Toda a questão da espiral de cinismo começa no nível em que os políticos e os jornalistas dizem estar a corresponder ao cinismo um dos outros, que estão apenas a reagir ao cinismo demonstrado pelo outro no processo de interlocução, o segundo degrau de voragem em cornucópia é o da confirmação do próprio cinismo do público testemunhado em sondagens, mas por réplica do que viram ser a retórica dos políticos e as tácticas dos jornalistas, finalmente o terceiro degrau de vertigem está na crença generalizada dos media de que estão a dar ao público aquilo que ele quer e deseja, minimizando a vontade do público em ter acesso a uma informação com conteúdo.
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Volto a falar disto aqui por causa da entrevista que a jornalista Maria Flor Pedroso conduziu ontem junto de Rui Marques, o representante do Movimento Esperança Portugal. Só tive oportunidade de ouvir os últimos quinze minutos da entrevista passada na Antena 1 ontem perto da meia-noite, mas o que ouvi foram quinze minutos de uma jornalista a procurar impor a sua visão estratégica sobre o que é a vida política e como pensa que são realmente os representantes políticos, contra uma atitude da mais razoável forma de pensar a política numa sociedade democrática como foi a apresentada por Rui Marques. Por um lado o discurso estratégico a querer compreender e a enquadrar este fenómeno do ponto de vista das suas aspirações instrumentais para conquista do poder, do outro lado um discurso de um agente da ética comunicacional como Habermas, entre outros, desenvolveu como forma possível de responder ao domínio da estratégia da maioria.
Nunca ouvi, aliás em contraste pela atitude mais cínica da jornalista, no sentido académico já delineado linhas acima, ninguém em Portugal em política recente a evocar novamente os valores da democracia participativa e deliberativa, como Rui Marques o fez, que nunca se deixou enredar nas crenças de uma visão instrumental da política. Que me recorde só Manuel Alegre conseguiu com o seu discurso de apresentação da sua candidatura uma elevação dos termos e das ideias ao ponto de entusiasmar verdadeiramente todos aqueles que acreditam na política como uma acção de regulação do poder público segundo a ideia de bem comum por excelência.
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Claro que é mais fácil ter discursos destes, inovadores, criativos, contra a corrente dos benefícios pessoais, quando se vem de fora do sistema, mas sendo mais fácil não quer dizer que seja fácil de todo. Senão haveria mais cuidado com os discursos dos políticos. Eu gostei muito da atitude pedagógica do discurso democrático de Rui Marques, numa altura que em Portugal o poder político anda desnorteado relativamente aos seus valores fundamentais que deve adoptar no trato da coisa comum. Um bom agente na defesa de uma comunicação política não estratégica.
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Também ontem tive oportunidade de ouvir quase todo o debate entre realistas (como defende o Prof. Maltez) e republicanos. Como republicana convicta gostei de assistir a um bom debate académico sobre a questão dos regimes políticos e dos seus valores. É um bálsamo ouvir análises distanciadas da coisa presente. Como académica pensei que a proposta monárquica, para além do seu interesse histórico e social, estava viciada à partida, julgando encontrar na figura de um rei a solução para os males da democracia republicana portuguesa. É panaceia que nenhum estudo de regimes comparativos me convenceu pelo excesso simplista da ideia: muda-se o chefe de Estado, tornamo-lo vitalício, e este regime podre florirá finalmente?! Uma figura providencial... era só o que nos faltava. Não é que na República também não haja quem se pense insubstituível, felizmente que quem o elege pode ensinar-lhe o contrário. É esta salvaguarda que eu prezo na república, esta reserva popular que não precisa de se manifestar sdobre a forma de revolução, mas que opera transformações profundas. Ou pode operar. Entende-se?
Por outro lado, tive oportunidade de voltar a ouvir um dos mais excepcionais professores deste Portugal, o Prof. Mendo Castro Henriques. Nunca encontrei ninguém com que eu discordasse mais sobre quase tudo e quem ao mesmo tempo eu mais prezasse academicamente. A minha admiração pelo intelecto daquele professor não tem paralelo, e eu tive a sorte de conhecer excelentes professores. É um magnífico pensador. Eram aulas dadas sem réstia de cinismo mental. Que saudades.

segunda-feira, março 10, 2008

A escola só como uma equipa que ganha dinheiro.

Porque é que a Ministra Maria de Lurdes Rodrigues não tem um pingo de dignidade democrática e se demite? Porque na realidade ela está convencida, e tem o primeiro-ministro com ela, que a razão, a razão estratégica e instrumental, está do seu lado. Então não é verdade que ela descobriu o ovo de Colombo financeiro da educação? Repare-se, passou a ter os cursos profissionais a serem leccionados nas escolas públicas, recebe 75 euros por hora da Comunidade Europeia (um curso CEF, por exemplo, corresponde a seis horas e meia de actividades lectivas por dia), põe os professores da escola a leccionarem esses cursos, no quadro das suas obrigações correntes e pagos segundo o seu índice de vencimento, e preenche as faltas com professores contratados que geralmente nunca são colocados no início do ano, portanto poupa em remunerações mensais, em subsídios de férias e de Natal, e reencaminha esse dinheiro não para as escolas profissionais que existiam, mas para os cofres do Estado. 1-0


Tratou de descompensar a carreira dos professores criando as pressões necessárias para que muitos se reformem compulsivamente ou deixem de leccionar.
Trouxe para a escola, com a promessa de simplificar a educação, muitos alunos que a tinham abandonado e que vêm agora uma boa oportunidade de possuírem o certificado. Muitos com a ideia de merecido reforço, a maior parte à conquista de um papel segundo a lei do menor esforço.
Não deixa as escolas contratarem auxiliares de educação, havendo escolas a funcionarem muito abaixo do número mínimo de contínuos, com o desnorte total no que às tarefas de vigilância, limpeza, manutenção e fiscalização da escola diz respeito.
Inventou a escola tecnológica para consumo da imprensa mas deixa que as escolas funcionem sem quadros em condições de qualquer espécie (e estou a falar de escolas no centro de Lisboa), e a maior parte do ano lectivo com poucos ou sem computadores para consulta/trabalho geral.
Impôs um novo estatuto do aluno que na prática é mais um momento de avaliação que não poderá ser contabilizado na sua nota final, mas que servirá para limpar o cadastro de faltas do aluno, no caso de ele obter nota positiva. Introduziu esta nota de permissividade às faltas mas impondo um elemento mais de confusão acrescido (não falo de trabalho mas de confusão) ao sistema de ensino.
Está a propor um novo sistema de avaliação que na prática continua a ser um instrumento de desestabilização individual e de criação de obstáculos na progressão da carreira, cuja funcionalidade está longe de servir para algo mais senão para paralisar o professor na sua função administrativa e torná-lo um manga-de-alpaca, um assistente social, um psicólogo, um gestor, um vigilante, enfim...

Se estivesse preocupada com os alunos e com a qualidade de ensino tinha privilegiado a avaliação científica e a realização de exames nacionais, com objectivos de realização por escola).


Fechou escolas e conseguiu convencer a opinião pública que isso era feito em nome da qualidade de ensino que se queria promover (ninguém se preocupou em saber as condições que as escolas de recepção tinham ou não para oferecer), o que interessou foi a medida de contenção de custos imediatos. As preocupações com a socialização escolar e o meio passaram para o domínio da fantasia teórica.

Pode-se agradecer tudo isto à Ministra. Ela realmente é uma funcionária exemplar num tipo de governo que utiliza todos os meios para atingir os seus fins que, desde o primeiro discurso, foram bem claros: redução do défice.

Só que depois não me venham dizer que nada disto é feito pelo dinheiro, em nome do dinheiro e para o dinheiro. Não é um crime. Mas digam-no, e não evoquem razões falsas como a preocupação com o ensino em Portugal.

Qualquer pessoa que seja ou tivesse sido professor sabe bem que o menosprezo social pelo papel social do professor o desautoriza dentro da sala de aula. Não do papel individual de cada um dentro do espaço de aula, porque isso depende da autoridade de cada um e da forma, as vezes no limite da força ética, como se souber impor, mas do que isso revelar de dentro da sociedade e depois para a sociedade, como froma de viver colectiva.

Se quiserem desautorizar os professores pensem bem nas consequências sociais dos seus actos , e que a sociedade continue a preparar-se para em tudo ser diferente.

Desacredite-se a autoridade e deixemo-nos vaguear de simulacro em simulacro de coesão social, até ao desejo final de uma força autoritária que se imponha como a única ordem.
Destrua-se paulatinamente os valores de uma sociedade democrática, como os da participação colectiva na resolução dos problemas comuns, e vejamos as almas a suspirarem por um regime punitivo, centralizador.
Preocupem-se só com o dinheiro na educação e esqueçam os valores a serem socializados. Assim como assim, haverá sempre princípios nos quais nos podemos exilar e pessoas com quem podemos argumentar. Talvez amanhã.

sábado, março 08, 2008

Não, agora a sério.

Há ali uma zona quase ao fim da Avenida da Liberdade que quando nos voltamos para trás dá para ver bem até ao Marquês de Pombal. No ar esvoaçavam milhares de bandeiras brancas e um corpo compacto de indivíduos movimentava-se. Peguei no meu filho ao colo para que essa fosse a imagem da solidariedade, da força e da beleza que ele retivesse, a imagem de uma companhia com milhares de pessoas a moverem-se em conjunto que ele associasse para sempre à ideia de uma manifestação.
Mas quem sabe o que ficará na sua memória: o cansaço pela longa hora de espera para iniciar a marcha? Os milhares de sapatos, pernas e costas que ele contemplava apertado no seu ângulo? Os gritos esporádicos que sacudiam a multidão em uníssono? Irá fixar esse movimento que fazia crescer as conversas espontâneas com pessoas que não se conhecendo entre si se perguntavam mutuamente em qualquer lugar onde se encontrassem: "Mas será que é agora que a ministra nos vai ouvir? Será que é agora que ela desce da sua fantasia antidemocrática de governar em gabinete e vem saber realmente acerca de nós, os seus agentes? Será que a equipa ministerial ainda vai conseguir dizer que estamos manipulados, que somos desinformados, que somos egoístas e uma classe inerte e anti-reformista? Será?"

Que ideia terá um dia uma criança que caminhou pela mão da mãe, que percebeu o seu orgulho quando via multiplicada por cem mil a sua presença, que sentiu o carinho dos manifestantes, que colheu os seus sorrisos, que ouviu as suas brincadeiras, que sentiu a simpatia da união dos que têm uma causa comum? Mas que também se sentiu cansada e aborrecida a certa altura?
Eu só conseguia pensar: a quantidade de saber e de conhecimento que vai a descer esta avenida... a quantidade de bom ensino que aqui vai... quanto empenho e competência de tantos mestres portugueses. Que belo exemplo de cidadania. E no entanto, que desperdício de energia que este ministério desbaratou, que pessoas desmoralizadas e desautorizadas no exercício de uma profissão a qual tudo deve à autoridade científica e pedagógica, mas também social, dentro da sala de aula. E ainda se o conhecimento se transferisse por osmose... talvez a razoabilidade se tornasse regra no discurso e na acção dos governantes da tutela. Mas qual o quê, nem osmose nem decreto consegue fazer um bom ensino.
E já se começou outra vez na demagogia: os professores são anti-sociais, são ignorantes, são manipulados. Outra vez e uma vez mais há que fazer rolar a pedra montanha acima, pode ser que de cada vez se ganhe mais uma pessoa para a causa que é a do exigido e manifesto respeito pelo saber.
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E é claro que há pessoas em situações económicas e sociais bem piores e que não fazem manifestações, claro que as há. Claro que há pessoas sem emprego, quanto mais vínculos vitalícios, famílias em situação muito difícil para sobreviver. Claro que as há. Mas esta manifestação não foi pela manutenção de privilégios, mesmo se estes sejam sobretudo aqueles que um agente da comunicação vendeu como discurso de boa governação para a área, foi sim uma luta séria para a inclusão social do papel central do professor em qualquer sistema de ensino. A minha escola esteve lá. Presente, com orgulho.

sexta-feira, março 07, 2008

"Obedeço sofrivelmente"

"Aprende-se muito pouco aqui, há falta de professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, nunca seremos ninguém, por outras palavras, nas nossas vidas futuras seremos apenas coisas muito pequenas e subalternas. A nossa instrução visa sobretudo incutir-nos paciência, e obediência, duas qualidades que pouco ou nenhum proveito prometem. Proveito espiritual, sim. Mas o que nos dão as virtudes espirituais? Trarão comida para a mesa? (...)"

Robert Walser, Jakob Von Gunten.

Ei-lo, ao livro. Já cá está em casa.

quinta-feira, março 06, 2008

O insulto de Vital Moreira aos professores

Excelente. A ler o texto intitulado "O insulto do Dr. Vital Moreira" no blog Almocreve das Petas. Excelente argumentação.

As culpas históricas são coisas a tratar só pela sociedade deles?

Eu penso que não, embora gostasse de pensar que sim. Mas porventura mais em Portugal que nos Estados Unidos isto de culpa histórica, que é como quem diz, de um certo tipo de impedimento no acesso das mulheres e dos negros ao poder de forma sistematizada e contínua ao longo da história, está por dizer e por esclarecer, sendo que eu penso que no final o mais relevante é o comportamento da pessoa e não o do seu género ou raça.
Todavia, não façamos barulho, não vamos ter que acordar e fazer alguma coisa para modificarmos o estabelecido.

"With Obama saying the hour is upon us to elect a black man and Hillary saying the hour is upon us to elect a woman, the Democratic primary has become the ultimate nightmare of liberal identity politics. All the victimizations go tripping over each other and colliding, a competition of historical guilts."
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Duel of Historical Guilts
por MAUREEN DOWD
Publicado: 5 de março de 2008 no The New york Times

O português no poder como "criatura contida e calculista"

Pouco a pouco, estou no ano de 1933, vou-me conciliando com a forma de trabalhar do político Churchill. Prefiro ver como ele labora quando está em oposição, como as suas causas e a sua inteligência se estruturam em uníssono para defender os valores em que crê, mais do que as suas movimentações, que considero comezinhas, para alcançar e se manter quando está no poder. Não é que a luta eleitoral seja comezinha, não é isso, é mais o jogo de influências baseado em interesses pessoais. Já é sabido, tenho um problema com certas realidades. Recuso-me a aceitar que seja um problema em relação à realidade.

Os discursos de circunstância dos opositores/comentadores à recente luta dos professores é de uma indigência que chega a tornar-se patética. Ontem ouvi, na repetição do programa Regra do Jogo, que passa na SICn, essa força viva de reflexão sobre princípios éticos e deontológicos que é o senhor ex bastonário da ordem dos advogados, Dr. Miguel Júdice, proclamar que não quereria que os seus netos tivessem como professores aqueles que ouvia e via manifestarem-se na televisão, depois de salvaguardar que os seus filhos já estavam felizmente a salvo de tal influência.
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Eu deduzo: como o senhor Júdice está em tudo a convergir com as propostas deste governo, alguma luz no seu caminho o está a guiar para o socialismo com laivos de imitação de planos quinquenais para a educação, e eu penso que essa luz seja a do capitalismo mais do que a do súbito amor por causas sociais (estas aparentes contradições até são muito bem explicadas no mundo contemporâneo), então, aquele senhor também deve estar de acordo com a ideia de que nos últimos trinta anos, tal como afirma o primeiro-ministro, a educação foi um domínio sem lei e sem ordem, logo todos os finalistas do secundário, os licenciados, os mestres e os doutores deste país que concluíram os seus estudos neste período de tempo, não têm, não podem ter, por essa perspectiva, uma formação científica e social de qualidade, visto que foram sujeitos a tamanha incompetência profissional dos docentes portugueses.
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Se eu fosse sindicalista poria em números os diplomados deste país nos últimos anos, em todas as áreas, e comparava-os com o de qualquer país que tivesse feito a mesma reforma na educação de massas e o mesmo aumento da população estudantil no mesmo período. E depois começaria por dizer um a um o nome de todos os que tivessem concluído o secundário em Portugal e tivessem sido aceites em universidades do mundo inteiro para prosseguirem os seus trabalhos académicos, até cansar, e faria constantes quadros comparativos com outros países. E no fim exigiria um pedido de desculpas aos professores pela forma aviltante com que este processo de reforma tem sido conduzido.
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O Prof. Barreto, no programa supracitado, pedia que os professores apresentassem propostas de avaliação, já que não concordavam com estas. Eu penso que essa questão é um pouco demagógica, pois a proposta é política e não profissional, e os professores não são políticos, nem têm uma ordem. A haver uma avaliação ela deve prender-se com objectivos que são claros para um professor, mas que poderão não ser os da sociedade/governo: eu, por exemplo, penso que um professor deve ser avaliado na sua competência para transmitir conteúdos, logo devia ser em exames nacionais que se poderia aferir essa sua competência. Mas esta minha ideia está ultrapassadíssima pelas propostas actuais que se centram na ideia de que o professor tem que ensinar sobretudo competências. Eu admito que haja necessidade de reformulação pedagógica dos objectivos, mas como se avalia um professor que tem que ensinar competências? Como quantificamos essa actividade? Como esta avaliação depende de uma linguagem pseudo científica e codificada como é a da pretensa ciência da educação (mas o que é esta ciência), os documentos sucedem-se para culminar no edifício da pura vacuidade instrumental que é esta proposta ministerial, que é puro artifício para barrar a progressão dos muitos milhares de professores que estavam agora no 8º escalão.
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E a mim continua a preocupar-me sobretudo que a educação não seja o sistema que institua uma socialização em nome do mérito e para o mérito. E que aí sim, a escola portuguesa não teve o poder de mudar comportamentos. Mas a escola portuguesa é a política dos governos portugueses, nos quais os professores são agentes, é certo, mas devíamos ter feito antes uma manifestação como a que será feita no dia 8 em nome destes valores, os do mérito. Mas vai-se sempre a tempo, e desta vez nem se vai a reboque dos sindicatos ou de interesses instalados.
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Paralisa-me o pensamento quando leio, e lendo-o com ele concordo, o que Pedro Lomba escreveu hoje no DN:
"Lamento decepcionar todos aqueles que buscam o nosso Obama. Mas não há nem pode haver o equivalente português de Obama, vindo talvez de Rio Tinto e, quem sabe, filho de uma moldava budista. Para começar, o percurso e a vida de Obama (com as suas origens afro-americanas, a sua errancia por todo o lado, a sua religiosidade primeiro muçulmana e depois cristã) são um produto genuíno da sociedade americana. O próprio Obama oferece-se sempre nos seus discursos como criação dessa mesma sociedade. Depois, Obama subiu a pulso na vida política e foi reconhecido pelo seu mérito (numa sociedade que sabe reconhecer o mérito) sem nunca perder a espontaneidade, a mesma espontaneidade que lhe dá o seu poder oratório. Quem em Portugal tenta subir a pulso encontra um país avesso ao mérito, esbarra com fidelidades organizadas e transforma-se rapidamente numa criatura contida e calculista. E, terceiro, um Obama à portuguesa, moderado e conciliador, decente e esperançoso, capaz de ultrapassar a esquerda e direita, seria por certo liquidado pelos paroquialismos e facciosismos do costume. (...)"

quarta-feira, março 05, 2008

"La cosa pica y se extiende!"

Sobre a crise venezuelana/colombiana aqui está a ligação a um bom texto, com as questões certas, do jornalista Orlando Castro do blogue Alto Hama.

O título do meu post é uma citação da minha amiga venezuelana que hoje me escreveu a dar-me conta das notícias de lá: a situação está a picar, e isto não significa nada de bom.

Reflexão avulso de uns e prática pedagógica de outros

Como é que alguém com as responsabilidades de João Marcelino é capaz de produzir uma peça deste teor:"Os professores e a sua luta contra a mudança" ? Ele sabe do que está a falar ou ouviu umas coisas da boca do dirigente da Fenprof e acha que sabe o que os professores querem? Os professores são mesmo contra a mudança ou são contra esta mudança? É que não basta falar em reformas, ou em mudanças, para que se reaja como cãozinho pavloviano a salivar pela mesma.

Faço minhas, sublinhado-as, as palavras do Professor Maltez, escritas no blog Sobre o Tempo que Passa: "Tal como na educação, quando falam em reformas e em avaliações, escolas e ministros, não compreendem que o essencial destes processos está na relação pessoa a pessoa e na procura da formação individual, sem retiros espirituais dos guerrilheiros congregacionistas, mas com alguma ratio studiorum."

Vamos ver quanto tempo leva até aqui os partidos se lembrarem de exigir o mesmo

"- Aliás, de Espanha, em matéria de jornalismo, a campanha eleitoral não traz grandes exemplos. Nos comícios eleitorais, as televisões estão proibidas de recolher imagens, devendo obrigatoriamente utilizar as que lhes são fornecidas pelos próprios partidos políticos. Por este andar, na próxima campanha, os partidos distribuirão também press-releases e a isso se resumirá a informação do eleitor.
Enfim, perante esta amostra, aqui, sim, é caso para dizer que de Espanha, em matéria de informação eleitoral, nem bom vento nem bom exemplo. "
José Leite, Pereira, Director do JN

Mas há quem defenda que o jornalismo comprometido dos jornais de Espanha, por exemplo, é que é um sinal de independência ideológica... só que depois, perdida a sua procura de objectividade, ainda se admiram que os partidos a queiram impor, de forma pervertida porque baseada em critérios partidários e não jornalísticos.

terça-feira, março 04, 2008

Imprensa dura para com Hillary Clinton mais do que por ninguém?

Soube, via Jornal Sol, que Hillary Clinton esteve presente no programa Daily Show. Fui ver o vídeo e escolhi a parte 2 da sua intervenção. Primeiro porque é nessa parte que Jon Stewart fala sobre o papel dos Media nesta campanha (haverá ou não uma intervenção contra a campanha de Clinton?), assunto que teremos que seguir com atenção, até porque o que daí se possa vir a transmutar para a realidade portuguesa, e depois, em segundo lugar, porque a senadora Clinton referencia a raridade do país e do partido que nos Estados Unidos permitem que duas figuras históricas disputem as eleições para o lugar mais importante da vida pública americana. É interessante.
Quanto à intervenção dos Media na sua campanha, enquanto apontamento negativo, parece ser um dado adquirido, até porque há constantes alusões ao tema. Veja-se o caso da entrevista no programa 60 Minutes.
Por outro lado, mesmo as entrevistas que lhe são feitas algumas são muito fracas. Por exemplo, eu achei a condução da entrevista da senadora por Katie Kouric uma desgraça: centrada nas reacções da candidata a uma possível perda (na emoção) e não nas suas ideias e projectos. Era a candidata que tinha que dar lições sobre o empenho de uma liderança, sobre a inevitabilidade de um percurso de campanha difícil mas que não o era nem mais nem menos se ela fosse um homem, e que não é mais fácil nem mais difícil para uma mulher exercer. Não sei se estas entrevistas não partem já com preconceitos sobre o género, mesmo se feitas por mulheres.
E depois perguntar-lhe: "Você gosta de Barack Obama?", sendo que a obriga a uma resposta que dura longos segundos em defesa do carácter e em nome da sua amizade por ele, um adversário, ao invés de estar a falar sobre o seu bem preparado projecto de liderança e sobre as suas causas: saúde pública, ambiente, economia, guerra e relações internacionais.
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Sobre a Obamania há hoje um artigo excepcional no DN de João Miguel Tavares: "UM OBAMA À PORTUGUESA PARA A MESA CINCO".

A escola pública não começou no século XIX, porque já existia mundo antes da América se inventar.

Ouça-se o que dizem estes dois ensaístas sobre a educação pública, no vídeo que há dois dias é disponibilizado online pela página do Sapo.


O argumento é o seguinte: a escola pública foi criada nos Estados Unidos pelos homens de negócio do século XIX, os mais ricos, que precisavam de mão-de-obra para as suas fábricas, e não a tinham em número suficiente de um tipo que fosse especializada em manter-se durante um longo período de tempo a cumprir tarefas de repetição, em linhas de montagem, ou que interiorizasse regras de comportamento como a pontualidade, a obediência no cumprimento de horários por turnos ou a sujeição à autoridade de uma figura dominante: patrão/professor.
Hoje em dia, alterado o tipo de economia, numa era pós-industrial, o que é preciso é oferecer ao sistema económico um outro tipo de educação mais criativa e que ensine os alunos a pensar. Mas dito isto porque é que o sistema não muda? Bem, dizem Alvin e Heidi Toffler, porque existem milhões de trabalhadores nas escolas que resistem a esta mudança. Os professores, por exemplo, têm medo de perder o emprego e não permitem a mudança do desastroso sistema. Mas eles até não desgostam dos professores... Alvin gosta da sua irmã, e ela é professora! (Ena! Belo argumento!)
..
Contra-argumento: Nem enveredo pela discussão do último argumento que se prende com a afirmação de "isto não significa que os professores sejam maus" porque não merece comentário. Começo antes por perguntar o seguinte: então se é a economia a exigir um novo sistema de ensino, e que pressiona a criar a escola segundo os benefícios que dessa acção possa retirar para a produção de uma maior riqueza através da empregabilidade de uma mão-de-obra especializada nas novas exigências dos negócios, porque não o faz novamente, a partir do zero, na medida em que já criou um sistema anterior que satisfazia os seus interesses, e tem um poder imenso na pressão sobre as políticas de qualquer parte do mundo? Ou criando escolas privadas que sirvam a sociedade de forma estruturalmente diferente das comuns?
Por outro lado, nos Estados Unidos, de onde vêm estes ensaístas, o ensino público é maioritariamente de gestão privada e continua a ser um desastre nas estatísticas relacionadas com a literacia. Serão assim tão competentes a formar o futuro, ou são os critérios das estatísticas que têm de mudar para responderem a uma nova sociedade com um novo tipo de valores/objectivos económicos?


E será que a responsabilidade é dos professores na inércia do sistema, ou é dos políticos que são quem realmente governam a educação? Qual é o poder do professor na orientação das políticas de educação do mundo? Haverá sistemas que tenderão a ouvi-lo, mas hoje em dia todos parecem saber na sociedade qual deve ser a atitude, os conteúdos e os competências que cada professor deve ensinar aos seus alunos, excepto o professor ele mesmo, o qual, por mero acaso, até se especializou de forma continuada e com uma exigência na prestação de provas constante para exercer a sua profissão. Mas quando este deixou de saber como fazer na sala de aula , dizem, parece, surpreendentemente, que continua a ter o poder de não deixar mudar o sistema no ministério da educação, de saber como impedir as reformas. Esta conclusão é deveras surpreendente!


Por outro lado, teremos que aceitar a interpretação economicista da origem do ensino público sobre a perspectiva sociológica? Porque razão se esquecem da transmissão de valores sociais e políticos que os homens americanos do século XIX também quiseram potenciar?
E mais, porque se esquecem estes ensaístas da existência de sistemas de ensino público desde a antiguidade, passando pela Idade Média até a idade moderna?

A igreja católica, primeiro, e a protestante mais tarde, podiam ensinar-lhes alguma coisa de sistemas públicos de educação e, já agora, da escola como meio de transmissão de valores que não só os do saber fazer/saber comportar-se. E é aqui que todos temos que saber quais preferimos, ou os quais devemos adoptar para uma sociedade livre e justa.

Ofensiva antes da grande batalha

O Ministério da Educação multiplica-se na divulgação de resultados que considera serem suficientes para desautorizarem ou enfraquecerem as capacidades negociais dos professores junto da opinião pública. Todos os dias procura impor as sua agenda sobrepondo-a à dos movimentos de reacção dos professores, com uma notícia estatística sobre qualquer facto de sucesso que imputam às suas políticas. Ninguém lhes nega êxito administrativo nem jeito para manipularem, através do novo enquadramento tecnico-profissional, os números.

É claro que há resultados para apresentarem. Não se discute o facto. Embora se discuta os números do continuado abandono escolar. A questão que os professores gostariam de ver respondida, no entanto, prende-se com o tipo de comportamento retórico/político evidenciado pela tutela para com os seus governados, que foi, a todos os títulos, lamentável, quer pela pobreza argumentativa e pela atitude agressiva a tocar o revanchismo dos seus discursos para com todos os agentes implicados no sistema educativo quer pela produção de uma realidade educativa em tudo orientada para a obtenção de sucesso mesmo se alterados todas as regras do jogo do sistema educativo tal como ele se apresenta na maior parte do mundo: ensino/aprendizagem; frequência de aulas; prestação de provas/exames por parte dos alunos; formação científica e pedagógica superior por parte dos docentes.

Imaginemos no entanto que o Ministério quis mudar realmente o sistema de ensino. Quis introduzir objectivos e programas totalmente novos, que não se tolhessem pelo tipo de currículo clássico, nem pelo tipo de código do aluno tradicional. Muito bem. Admitiu que havia toda uma nova dimensão do ensino a explorar e que consistia em passarem os professores a leccionar aquilo que mais interessaria a uma certa ideia de um certo tipo de aluno (aquele que sistematicamente se vinha a auto-excluir do sistema anterior pelas mais variadas razões: económicas, sociais, psicológicas, comportamentais, disciplinares, etc.).
Criados estes cursos (os Cursos de Educação e Formação (CEF) para os mais novos, e os de Ensino e Formação de Adultos (EFA) para os maiores de idade), muitos alunos voltaram à escola com a promessa que bastaria estarem presentes nas aulas, bastaria saberem escrever pouco mais que o nome, que os dois anos do curso lhes daria acesso a um diploma de nono ano, ou o equivalente ao 12ª ano, numa compactação dos conteúdos e das disciplinas leccionadas nos programas clássicos. Isto para já não falar de cursos realizados num semestre e que dão equivalências ao 9º ano ou ao 12º ano. Há algum inconveniente em trazer todas estas pessoas de volta à escola? Nenhum. Há algum inconveniente no tipo de mensagem que se dá à sociedade de que façam ou não façam o que quiserem os alunos portugueses haverá sempre e mais uma oportunidade, e essa será sempre mais facilitada, e que lhes atribuirá exactamente o mesmo tipo de certificação oficial do seu percurso que a um qualquer aluno que se esforce por cumprir as exigências dos currículos tradicionais? Há.
A igualdade de oportunidades não é uma forma de abusivamente transformar a equidade em igualitarismo. A igualdade de oportunidades deve ser indiscutível em cada momento da partida, ou de um novo começo, mas devem ser responsabilizados todos os que não quiseram, não os que não puderam, cumprir os objectivos, todos os que no percurso sistematicamente o puseram em causa. Os que à partida já partem em desvantagem, devem ser acompanhados por técnicos formados para os estruturar do ponto de vista social, económico, comportamental ou psicológico, não lhes deve ser dada a ideia de que uma vez mais e sempre será o Estado com as suas leis que intervirá para o resgatar de si próprio.

Se este governo tivesse querido tratar o assunto com seriedade, teria criado escolas tecnico-profissionais (e não se lançava para a multiplicação de cursos profissionais por tudo quanto é Centro de Emprego ou escola, com um número elevadíssimo de formadores da componente técnica que nem sequer formação pedagógica têm, sendo que muitos nem formação superior completa possuem), teria criado um estatuto do aluno exigente, ainda que contemplasse as idiossincrasias de uma comunidade escolar com problemas recorrentes em disciplina e tendentes ao abandono escolar, teria, finalmente, distinguido claramente um percurso técnico de um percurso científico. Mas não, tal como procedeu está a trabalhar para os números, e para a ilusão de que recuperou para a escola indivíduos com objectivos de aperfeiçoamento profissional. Daqui a dez anos voltamos a falar sobre o nível de literacia dos muitos diplomados deste país. mas nessa altura já lá estarão outros governantes a acusarem-se mutuamente do descalabro.
E de acusação em acusação, os mais desfavorecidos tenderão sempre a continuar como tal, porque não se pense que os pais com mais recursos económicos ou emocionais, vão deixar que os seus filhos se percam nesta miragem facilitista.

domingo, março 02, 2008

Uma janela com vista para a chuva

Li o livrinho de Allan de Botton como quem come tremoços.

Do alto da sua bonacheirice, Churchill ficou parado em cima do tampo da minha mesa, num tempo que foi o tempo em que foi convidado para Ministro das Finanças. Sei que anda atarefado e distraído com os seus projectos para a Grã-Bretanha no fim dos anos vinte, por isso pode ficar suspenso nesse tempo que o traz feliz e activo. Não precisa da minha atenção para nada.

O texto que escrevo sobre o meu excelso Apel também paira sobre a ideia que tenho da realidade e olha para mim a reclamar um ponto final, mas a minha circunstância não está emparelhada com a da reflexão trasncendental. A imensa sabedoria do filósofo não se compagina com a minha estarolice.
Não, o que eu quis foi ler Botton, e fi-lo num tempinho.

A história do livro é a história de uma paixão e de um namoro vivido pelo corpo e mente de um filósofo. É reveladora do humor e da inteligência, do discernimento sentimental e do lugar da consciência que é possível dentro de uma paixão. É toda uma nova perspectiva que os livros dos psicólogos não contemplam, e que é a da história da razão pessoal compelida pela emoção, e desta observada por aquela. Um belo trabalho de análise e de auto-reflexão sobre a paixão amorosa.

Li o livro como quem olha a chuva num dia de vendaval por detrás de uma vidraça que a protege da intempérie. Não que a pessoa não saiba o que se passa lá fora, pois se o está a ver, a ouvir, a sentir, enfim, sabe identificar os riscos do temporal, mas a verdade é que quem não está lá fora não está verdadeiramente a sentir a chuva. Não é que não saiba o estado em que ficaria se estivesse no exterior, porque quem já andou à chuva sabe que ela molha, e no entanto, não se estando à chuva ela não nos pode molhar. O saber e o viver são dosi estados distintos, ainda que haja um ponto que os intercepte, é um ponto entre o tempo passado e o presente.
E nesse conforto - ainda que nunca nada esteja absolutamente estabelecido de uma vez para sempre quer no sujeito tranquilo ou quer no sujeito que aporta essa tranquilidade, e isto sabe-se por que se sabe - há uma espécie de aquietação por se viver como se em eternamente.

Os sobressaltos das paixões, das relações tumultuosas dos outros, são entendidas, se nós próprios não estivermos a viver qualquer coisa que se lhe assemelhe ou que queiramos que se assemelhe, como filmes antigos que revemos com distanciamento e com displicência enfatuada onde vamos assinalando aqui e ali os seus anacronismos.

Botton fala de paixão, da que fulgura no amor por uma mulher, e só percebemos que não era a descrição da paixão - a paixão imobilizada pela teoria, pelo verso do poeta, pela ficção ou na oração - no fim do livro.
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Foi golpe de um génio meio maligno. Prende o leitor desde o início à ideia de que aquela é mulher encontrada, será por acaso, será por necessidade?, e com que o autor queria partilhar toda a sua vida ao ponto de ir buscar a literatura matemática e a filosófica que lhe explicasse a in(evitabilidade) daquele encontro, para depois no fim acabar por nos dar uma lição. Ou será para depois dar uma lição a Chloe?

- Sabes Chloe - podia ter dito Botton - Eu escrevo para te dizer que queria que fossemos sujeitos na realidade de Parménides e acabamos a dar razões a Heraclito. E esta consciencialização foi penosa, não se tratou de uma aula de filosofia que rebenta com o senso comum, foi uma lição de dor física.

O autor escreve para dizer à mulher amada que existem várias interpretações sobre o que é a realidade, e a realidade de uma vida apaixonada não é de um tipo interpretativo tão distinto em si de todas as outras da natureza.
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Desde a antiguidade que os filósofos reclamam: uns pela imutabilidade das coisas tal como elas são, enquanto outros procuram justificar a mutação das coisas tal como ela aparenta ser.
Parece que Botton escreve para dizer algo do tipo: eu posso passar uma vida inteira a defender a imobilidade desta forma de te amar, sujeita a transformações que nunca alterarão o principal, que é a mesmice paixão por ti, ou posso converter-me, por força das circunstâncias, numa prova viva, num momento do fluir imperioso com que todas as formas de manifestação do ser operam, sendo a paixão sentida por ti não a excepção mas antes uma regra.

E, como Chloe aprenderá ao ler (se é que Chloe o lerá alguma vez, e, lendo-o, com isso se importará ou deixará afectar), este livro foi escrito para lhe dizer que o autor em tudo lhe sobreviveu, e que a paixão fluiu e voltou a refluir, transfigurando-se uma vez mais na presença de outra pessoa.
E para sempre? Ou mais? Ou um pouco menos? Ele não tem coragem absoluta par nos esclarecer. Apenas nos entreabre a porta para essa hipótese, a de que em tudo a paixão se parece com a mesma, ainda que seja outra. Fica a dúvida, porém, e nesta o devaneio mítico dos românticos (a paixão é sempre única) ou o retorquir dos cépticos (nem pensem tal!).

O livro Ensaios de Amor deve muito, no tom e na estrutura, ao livro de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, ao qual não faz referência. Mas isto em paixões, mesmo aquelas que nos influenciam a pensar sobre o que sentimos, é tão importante o que se diz como o que ficou por dizer. Os filósofos chamam-lhe o diálogo implícito. Mas dão-se menos bem com esta realidade. Pelo menos os que eu conheço melhor. Eu, do meu lado do vidro, compreendo-os.