Utilizam-se muito expressões do seguinte teor: 1. A situação (económica, social, cultural ou política) nunca esteve pior; 2. Portugal parece um país do terceiro mundo; 3. Estamos a viver tempos de crise de valores.
Leiamos livros de História ou fiquemo-nos pela leitura de biografias, também vale. Quando é que a situação (económica, social, cultural ou política) esteve melhor em Portugal, para um universo com o mesmo número de pessoas? 2. O que se entende então por um país do primeiro mundo? 3. De que tempo vem esse tempo em que não se viveu em crise de valores?
Reconheço a estratégia argumentativa/sindicalista dos que querem fazer aparecer o que não é razoável no actual estado de coisas, com o intuito de provocar uma pressão conjugada dos descontentes sobre as lideranças, quantas vezes distraídas dos seus deveres, ou indiferentes à sorte dos seus subordinados. Mas o que se ganha com esse princípio de negociação pela partilha do poder, ou por uma aplicação mais equilibrada e justa desse poder, perde-se em conhecimento da realidade. E o que vale para um indivíduo ou uma família, que poderá legitimamente sentir-se espoliada ou insegura, não vale estatisticamente para a sociedade. Digo estatisticamente porque há uma diferença entre o que eu percepciono como realidade e a própria realidade dos números. Estes não dizem tudo sobre o real, claro, mas indicam, como é muitas vezes o caso, o desfasamento entre as impressões e a prática que se diz estar na origem dessas impressões.
Leiamos livros de História ou fiquemo-nos pela leitura de biografias, também vale. Quando é que a situação (económica, social, cultural ou política) esteve melhor em Portugal, para um universo com o mesmo número de pessoas? 2. O que se entende então por um país do primeiro mundo? 3. De que tempo vem esse tempo em que não se viveu em crise de valores?
Reconheço a estratégia argumentativa/sindicalista dos que querem fazer aparecer o que não é razoável no actual estado de coisas, com o intuito de provocar uma pressão conjugada dos descontentes sobre as lideranças, quantas vezes distraídas dos seus deveres, ou indiferentes à sorte dos seus subordinados. Mas o que se ganha com esse princípio de negociação pela partilha do poder, ou por uma aplicação mais equilibrada e justa desse poder, perde-se em conhecimento da realidade. E o que vale para um indivíduo ou uma família, que poderá legitimamente sentir-se espoliada ou insegura, não vale estatisticamente para a sociedade. Digo estatisticamente porque há uma diferença entre o que eu percepciono como realidade e a própria realidade dos números. Estes não dizem tudo sobre o real, claro, mas indicam, como é muitas vezes o caso, o desfasamento entre as impressões e a prática que se diz estar na origem dessas impressões.
Quero com isto dizer que está tudo bem e que vivemos no melhor mundo possível? Não.
6 comentários:
Só uma achega: se «crise» designa passagem (neste caso de um conjunto de valores a outro), naturalmente tem razão. Porém, há que ver que a passagem, a mudança de valores, em certos momentos da História do Ocidente se operou muito lentamente (houve valores estáveis durante séculos) enquanto que nos últimos séculos (e sobretudo a partir dos séculos XIX-XX) essa mudança foi vertiginosamente acelerada.
Lector, diga-me, houve valores estáveis durante séculos? Quais?
O que me parece que sempre houve foi a tentativa por parte das diferentes instituições sociais, em diferentes períodos, em estabelecer valores estáveis, em fixar os valores que mais se adequavam à sua prática, com diferentes graus de conflitualidade social daí resultante. O que é, parece-me, muito diferente.
Paralelamente, houve sempre uma preocupação filosófica e religiosa de fundamentar esses valores, e houve sempre uma procura, filosófica, de os legitimar racionalmente de forma universal.
Diz: «O que me parece que sempre houve foi a tentativa por parte das diferentes instituições sociais, em diferentes períodos, em estabelecer valores estáveis, em fixar os valores que mais se adequavam à sua prática, com diferentes graus de conflitualidade social daí resultante.» Precisamente. Mas não me parece muito diferente. Digo-lhe dois que foram estáveis durante séculos: a autoridade e Deus. Concordará que a contestação a estes valores foi, durante séculos, residual. E, se houve por exemplo guerras religiosas (não importa as motivações políticas ou económicas subjacentes) foi precisamente porque esses valores eram perfilhados por uma maioria. Quando falo em valores, pressuponho alguém (uma maioria) que adira a eles. Se começa a haver um número assinalável de pessoas que começam a aderir a outros, então podemos falar de crise (dos antigos, mas sobretudo da passagem a um novo paradigama axiológico). Resumindo: se na prática os súbditos regeram a sua vida pelos valores das instituições (não obstante estas os usarem, aos valores, como pretexto à sua sobrevivência e interesses), e isto durante bastante tempo, não compreendo como podemos pôr em causa a sua estabilidade efectiva. Ressalva: esta avaliação é naturalmente histórica, uma vez que não é possível sondar as consciências dos mortos (nem dos vivos).
Lector, já viu as manifestações que os termos autoridade e Deus foram tendo na "letra" dos que escreveram sobre isso? Falo da letra para não falar da "espada", e abstenho-me de pronunciar sobre o "espírito" porque deste nada sei.
Para não sairmos da bibliografia portuguesa sobre o tema, já viu os tratados que foram sendo escritos durante a nossa Idade Média sobre a noção de poder divino/poder temporal? As discussões que houve sobre a qualificação do tipo de poder pertencente ao príncipe, por exemplo? Eram todos assumidamente cristãos? Sim, mas com múltiplas interpretações, e às vezes nada subtis, de como esses valores deviam ser exercidos temporalmente.
Se me disser que há um conjunto de valores cuja história se pode fazer, eu concordo consigo, se me disser também que houve valores cuja socialibização foi extensiva, também concordo,mas não consigo encontrar um período na história (nem décadas, quanto mais séculos) em que os valores não fossem continuadamente revisitados. Seja dentro do sistema oficial de ensino e cultura, seja por exilados políticos, seja por opositores clandestinos aos regimes dominantes. Mesmo se sob fortíssima violência. Aliás quando é que o poder se torna violento? Não é quando as suas prerrogativas são questionadas?
Sim? Não? Talvez?
Teríamos aqui pano para mangas, com lugar a mais argumentos e contra-argumentos, a mais exemplos e contra-exemplos. Em breve chegaríamos à necessidade de estabelecer uma definição comum de «valor» ou rejeitar essa possibilidade, determinar a sua natureza, etc., enfim, o habitual.
Mas vou abandonar o tabuleiro. É que o jogo argumentativo, embora estimulante de início, quando se começa a extremar nas posições, torna-se polémico (bélico), perde-se em estratégia (daí se tornar repetitivo e surdo) e, pior, esquece aquilo que o devia animar, a «concórdia». A verdade é que me enfada este jogo. Desculpe, tê-lo começado. Prefiro, de longe, o jogo da criatividade, da sugestão, do estímulo. Abandono, pois, o tabuleiro.
Não sem antes - coisa feia - me atrever a um último lance. Depois, prometo, retiro-me.
Parece-me que o que aqui aconteceu foi a utilização de critérios diferentes que conformam perspectivas diferentes. Para mim, para que objectivamente (reforço o «objectivamente») seja considerado que um período histórico teve valores estáveis, basta que a maioria (mesmo manipulada, mesmo não esclarecida) tenha perfilhado dos mesmos valores durante esse período; para si, seria necessária, ao que parece, uma unanimidade de aderentes esclarecidos. Isto vai desembocar directamente no teor do seu último comentário. Que fique bem claro: a minha simpatia - mais do que isso, tudo o que eu sinto e penso, vai para a rememoração e para a exaltação dos injustiçados da História, logo, empenhando-se na denúncia das estratégias do Poder. Os exilados políticos, os opositores clandestinos de que fala e que nunca esqueço, fizeram parte da História, sim senhor, e também vieram a desempenhar um papel importantíssimo – por exemplo na eclosão da Revolução Francesa. Porém, não era isso que aqui se discutia. As pessoas, o povo, a maioria, os soldados, poderiam ser infelizes com os valores que eram obrigados a seguir, mas eram os que conheciam e, quer se queira quer não, os seus. Aquilo que fizeram os estudiosos (revisitar os valores, como diz, reformulá-los a gosto ou por imperativo ético, oficialmente ou no contra-poder) não afectava no imediato a realidade. Não de forma a mudar o paradigma axiologico-político. Se o exército A’ morria pelo Príncipe A ou pelo Deus A e o exército B’ pelo Príncipe B ou por Alá-B, isso não quer dizer que os valores da autoridade ou de Deus fossem postos em causa. Pelo contrário. As interpretações (embora eu não seja essencialista, axiologicamente falando), não mudam a substância ou a denominação do valor: independentemente desses jogos de bastidores ou da luta heróica contra os mesmos, os exércitos, os inocentes, continuavam a morrer - e justamente por esses valores! E, sim, durante séculos! Como agora, de resto. Adenda: considero que os valores só existem pela adesão, mas que essa adesão não é nunca exclusivamente guiada (esclarecida) pela razão, que é sempre também emocional e/ou «interesseira».
E com isto retiro-me.
Pronto Lector, se se retira não ouve a resposta, não é? Mas concedo-lhe a necessidade imperativa de definir termos em qulquer discussão.
Enviar um comentário