Muitas pessoas estão a confundir a intervenção do papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona com se de um tocar de sinos a rebate para reunir a congregação cristã se tratasse. Eu continuo a julgar que antes de mais o papa está a fazer uso da sua capacidade de raciocinar e de usar argumentos para falar para a humanidade, em nome da capacidade de cada um poder utilizar a sua razão, desenvolver o seu espírito crítico e manifestar-se livremente. Isto não é uma prerrogativa do ocidente, são faculdades comuns a todos os seres humanos que devem poder discutir em público as suas ideias e crenças.
Mais do que uma defesa dos valores ocidentais, o papa está a defender os valores universais da pessoa humana. Temos tendência a esquecer que os radicais islâmicos não nos fazem mal a nós ocidentais em primeiro lugar, fazem-no ao seu próprio povo que está constrangido a moldar o seu comportamento de acordo com os ditames de suas excelentíssimas individualidades supremas. Quantas pessoas moderadas se sentem forçadas ao silêncio, porque senão serão perseguidas, presas ou mortas? Quantas pessoas que não crêem o podem afirmar sem incorrer em penas de morte? Quanta liberdade existe para o povo muçulmano pensar e agir para além da que os seus líderes religiosos/políticos lhes ditam? Isto é viver sob ditadura, e, a esquerda que não se engane, não é passível de ser contextualizada na esfera do respeito pela diferença cultural de cada povo. Isso é entregá-los a forças violentas que não os atendem ou prezam em nome de uma vontade de poder abusivo.
Não se trata de um discurso que contraponha o mérito dos cristãos (até porque a história ensinou-nos bem, onde e como tão mal se empregou esse mérito) ao desmérito dos muçulmanos, a direita que não se engane. É um discurso que anuncia a possibilidade de cada um interpretar as crenças num quadro alargado de reflexão e uso da vontade autónoma. O mundo muçulmano está a guardar por um John Locke que escreva a sua “Carta sobre a tolerância”, e nós não devemos ignorá-lo em nome de uma ideia de que não nos devemos imiscuir nos seus assuntos internos. Claro que não devemos, mas daí a calarmo-nos cobardemente com medo dos urros da populaça há uma diferença enorme para o animal que pensa. O papa não temeu nem se acobardou. Falou pelos intelectuais do mundo inteiro, sobretudo pelos que não podem exprimir o que pensam.
Eu penso nas muitas crianças e nas mulheres muçulmanas que continuadamente são reféns da violência, penso sobretudo nas crianças afegãs que ontem foram vítimas de uma maliciosa criatura que não suportou vê-las felizes a receber pequenas lembranças. O ódio pelo ocidente é grande, mas o sentimento do ocidente por eles não deve ser o de uma indiferença maior, em nome dos que lutam pela liberdade.
“... não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas, nem tampouco a quaisquer outros homens. Isto não lhe foi outorgado por Deus; porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros homens a aceitar sua religião. Nem tal poder deve ser revestido no magistrado pelos homens, porque até agora nenhum homem menosprezou o zelo de sua salvação eterna a fim de abraçar em seu coração o culto ou fé prescritos por outrem, príncipe ou súdito. Mesmo se alguém quisesse, não poderia jamais crer por imposição de outrem. (...)
Em segundo lugar, o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil, porque seu poder consiste totalmente em coerção. Mas a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito, sem o que nada tem qualquer valor para Deus, pois é a natureza do entendimento humano, que não pode ser obrigado por nenhuma força externa. Confisque os bens dos homens, aprisione e torture seu corpo; tais castigos serão em vão, se se esperar que eles o façam mudar seus julgamentos internos acerca das coisas”.
John Locke
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