domingo, outubro 22, 2006

Um livro dentro do qual se pode viver




"O meu processo baseava-se numa série de observações feitas desde há muito em mim próprio: toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado. E nunca prestei grande atenção às pessoas bem intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. Pode ser: mas, no estado habitual do mundo, é como recusar alimentação necessária a um homem emagrecido com receio de que alguns anos depois ele possa sofrer de super-abundância. Quando se tiver diminuído o mais possível as servidões inuteis, evitado as desgraças necessárias, continuará a haver sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projectos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas."


Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, 5ª edição, trad. Maria Lamas, Lisboa, Ulisseia, 1974, pp. 98-99.
Naquele dia, a minha audiência era constituída por idosos que tinham feito a gentileza de me ir ouvir. O grande auditório da Junta de Freguesia estava cheio. Naquele tempo acabava sempre as minhas prelecções ou as minhas aulas com a leitura deste texto, que conhecia quase de memória. Digo quase porque nunca é mais do que quase. Quando comecei a ler, lembrei-me: são maioritariamente velhos os que me ouvem, gente informada, interessada e activa, mas velhos. Vou dizer-lhes que a velhice é um verdadeiro mal? Não faz sentido. E quando me aproximei dessa parte do texto, hesitei, suspirei e...saltei a palvra. Cobarde. Deixei de lado a velhice e entreguei-lhes a morte, as doenças incuráveis, o amor não correspondido e o mais de mal que há. Mas a velhice não. Porque a velhice só é um mal quando assoberba o indivíduo com todos os outros males. Não por si.
Não por si, justifico-me eu. E acredito.

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