quinta-feira, janeiro 04, 2007

o imaginário histórico em discurso político

Le Nouvel Observateur” editou um número duplo para o período compreendido entre 21 de Dezembro e 3 de Janeiro. Dedicou 48 das páginas da revista ao tema “O século das luzes. 1715-1789 Quando a França inventou as liberdades”.
É um espanto esta restauração permanente da França sobre o seu papel histórico. É assim que se produz uma imagem de nação, é pela consistência não desarmável de títulos como este. A Inglaterra fá-lo constantemente também. É a projecção da sua ideia de nação política no mundo que serve de chave de entrada para os múltiplos negócios que se fazem à sombra de conceitos. Mesmo que os seus concorrentes ingleses não lhes deixem ocupar impavidamente um lugar que lhes conceda a titularidade de nação das liberdades por estes sempre almejada, na verdade é uma ideia que rende muito e é capitalizada num lugar cimeiro no ranking dos países com imagem de progressistas junto da opinião pública mundial.
Num conjunto notável de artigos, autores como Philippe Sollers ou Mona Ozouf, entre outros, desenvolvem as suas ideias sobre pensadores e figuras, conceitos e acontecimentos que marcaram o século das luzes francesas, procurando fazer as pontes com o presente e não descurando na apresentação dos outros iluminismos europeus como o da Inglaterra, Escócia, Alemanha, Itália e Rússia.

Curioso o artigo de Fabrice Pliskin sobre Olympe de Gouges autora da “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, Dedicado à Rainha” publicada em 1791 . Pliskin chama-nos a atenção para o aspecto simbólico que teve a alusão a Olympe de Gouges por parte da candidata presidencial francesa Ségolène Royal no seu discurso de investidura à eleição. Royal assume claramente a herança intelectual da humanista executada em 1793 pela sua defesa dos girondinos, renegada pelo seu único filho que procurava salvaguardar a sua própria vida, e acusada por alguns psiquiatras de ser paranóica por a considerarem dominada pela sua mania reformadora (as mulheres quando espíritos reformadores são paranóicas, os homens, por sua vez, são figuras heróicas e lutadoras. Misoginia oblige). Esta mulher que proponha, entre outras ideias, a criação de um sistema de protecção maternal e infantil, foi recuperada para o discurso político pela candidata socialista à presidência. É por este trabalhar do imaginário que o discurso de alguns políticos franceses e dos seus intelectuais continua a mostrar ao mundo a ideia de uma França soberana e guia ideológica. É assim que se constrói uma personalidade nacional, para não falar numa personalidade política.

Dirá Marc Fumaroli no seu artigo “Historiographie de la France et mémoire du royame au XVIII siécle » que a falência dos historiadores franceses do século XVIII em fundamentar o “civismo monárquico”, não tendo em conta os catorze séculos desse regime e não conseguindo criar uma ideia sustentada e partilhada de memória comum, foi uma das razões para a investida de uma revolução que fez tábua rasa do seu passado e utilizou o terror para construir o futuro.
Um corpo intelectual que descuida na promoção dos valores e da legitimidade do uma ideia futura da nação, entrega-a ao primeiro mercador que a quiser contrabandear em qualquer esquina da História. É o que não tem faltado em Portugal.

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