segunda-feira, janeiro 22, 2007

"tu vês avançar para ti a literatura"

Ziguezagueando entre a morte, a lei e o ego.

Num mês da minha vida trabalhei um mês na Biblioteca Nacional. Foi durante umas férias universitárias, num programa de ATL para jovens que então era promovido pelos governos da época. O dinheiro ia inteirinho para ajudar a pagar o meu bilhete de InterRail desse ano, e o lugar de trabalho era o meu preferido.
Estava um dia muito quente de entre o fim de primavera e o princípio de verão. No primeiro dia de trabalho levei um vestido cor-de-rosa. Tal qual. Recordo-me, claro, pois deve ter sido a áurea que aquela cor me dava que convenceu a senhora que ficava responsável pelo meu trabalho, pois quando ela chegou ao pé de mim fez um ar de agrado e disse-me que eu podia ficar no serviço de atendimento ao público. Quem gosta de vestir um vestido cor-de-rosa não se ofende com esta atribuição de prendas.
Qual ganso deslizei como um cisne, e, sentindo-me mimosa, planei até à minha secretária, sita na intimidante sala de consulta geral. Ao tempo só havia meia dúzia de computadores que obrigavam a uma consulta em pé. A informatização da biblioteca estava a começar e as pesquisas faziam-se então com base no arquivo de fichas e por consulta manual, sistema que ainda hoje se mantém apesar da crescente informatização. A mim competia-me aprender a interpretar os códigos das fichas de consulta, ajudar os leitores nas suas buscas e verificar a correcção dos dados nas fichas preenchidas pelas pessoas antes destas ingressarem na sala de leitura. As coisas, simples coisas, devem ter corrido bem porque nunca mais vi a minha chefe, e em poucos dias os meus colegas de secretária já me deixavam sozinha na sala. E aí eu pairava, qual soberana, nesse mundo de informação, de prestação de informação, de troca de informação. Um mundo perfeito.

Dos muitos episódios que aqui poderia contar, destaco um, hoje, em memória de.
Um dia, pela hora do almoço, uma senhora ao passar pelo nosso lugar parou um pouco para conversar com a minha colega. Eu levantei os olhos e vi-a. Nesse tempo lia poesia como quem come. E conhecia a sua obra porque a minha amiga de adolescência, a Cláudia, a minha grande referência para livros e autores, ma indicara como uma poetisa das maiores. Embasbacada fiquei. A senhora trocou comigo um olhar fugaz e sorriu-me levemente. Lembro-me de uma voz e de uma presença muito suaves. Mas nunca mais a voltei a ver.
Perguntei à minha colega, ainda sob o efeito hipnótico da sua presença: “Era a poetisa Hasse Pais Brandão, não era?” Era. Ó sensação de glória.

“Tu vês avançar para ti a literatura,
a resfolegar e a chiar.
Sabes vencer o monstro que te exalta.
Viste como se enrosca o Leviathan.

Mas conheces o hipogrifo, a ave Zizith
e o unicórnio? Este é benigno
e simboliza através do Conhecimento
a Criação. Portanto vê, exegeta,

que ao lado do Autor o chifre
luminoso corta o ar e a Via.
Ambos vêm com os livros e também
todas as figuras e pensamentos

alheios que em trânsito
atravessaram pelo meio de si o Autor.
Exegeta, o que tu viste,
com o teu único olho ciclópico,

é um paralelepípedo onde
a voz ou o silêncio da voz
adquiriram uma figura sólida.”
Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve

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