domingo, outubro 14, 2007

A vida daqueles outros

Como eu o entendi ontem, depois da sua visualização pela primeira vez, o filme, que em português recebe o título "A vida dos outros", conta a história de um homem que muda a sua forma habitual de trabalhar não por influência directa das acções ou das palavras dos seus vigiados, mas por influência dos ideologicamente degenerados discursos dos seus camaradas superiores, que, no entender do operacional em causa, estariam a ser mais perniciosos ao regime que os próprios cidadãos indicados como destabilizadores da segurança interna do Estado.
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O filme não conta a história de um agente da Stasi, polícia secreta da então República democrática Alemã, que ao ser incumbido de vigiar um grupo de artistas e intelectuais muda a sua visão da política, e do seu trabalho, por influência directa das palavras ou das acções das pessoas vigiadas.
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É o agente, um operacional solitário, criterioso, estudioso, pragmático, exímio na arte do interrogatório e convencido da absoluta legitimidade da sua acção na defesa de um Estado comunista contra todos os seus inimigos, que inicia a sua própria queda pessoal e profissional, e a dos alvos da sua investigação, quando comunica acidentalmente as suas dúvidas, então ainda académicas, sobre a exemplaridade de comportamento de um escritor nacional famoso e aceite pela cúpula administrativa.

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Quando as suas desconfianças são repetidas por outrem junto do Ministro da Cultura, que tem o poder de interferir na vida dos outros, e o desejo, libidinoso, de o fazer em proveito próprio, a tragédia inicia-se.
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O agente Gerd Wiesler não descura nenhum pormenor técnico ou táctico na sua operação, e tem mesmo a sorte ao seu lado ao menosprezar uma acção de "sabotagem", deixando passar sem castigo uma acção que servira exclusivamente ao grupo vigiado para testar o grau de segurança do apartamento policiado, dando-lhes a ilusão de uma segurança e de uma privacidade que, de facto, não possuíam, contribuindo assim para uma melhor cobertura da espionagem.
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O escritor observado, um político marxista idealista, altera a sua visão acerca do poder discricionário do regime quando um seu grande amigo se suicida. Acontece que esse amigo era um conceituado encenador que o regime indiciara como proscrito impedindo-o de trabalhar. A reflexão iniciada então pelo escritor sobre a inexistência de um número para os suicídios cometidos na planificada Alemanha Democrática, e que irá ser publicada em artigo de jornal no Ocidente, podia resultar na sua detracção e afastamento da ordem social e cultural, mas, paradoxalmente, o agente que o vigia esconde da hierarquia essa acção. Porquê? Porque no dia em que vai entregar o relatório que incrimina o escritor, o seu chefe inicia uma peroração sobre os privilégios dos funcionários de Estado, sobrepostos aos princípios do Estado, e delicia-se na antevisão dos castigos aplicados a artistas, privados de um julgamento, mesmo que sumário, e submetidos a uma detenção em regime de solitária, através da qual se lhes minaria a vontade, destruindo a sua personalidade.
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O agente não está contra o castigo das acções cometidas contra o Estado que defende. Está contra aquele castigo específico, à margem da própria lei da segurança interna, e contra o tipo de legitimidade evocada: o da defesa dos interesses privados. No caso o interesse de subir na carreira, revelado pelo seu superior, e à custa da satisfação dos desejos de um Ministro por uma actriz, namorada do escritor. Como o ministro se queria ver sem concorrência, o processo de incriminação é altamente requerido, para melhor poder subjugar uma mulher confundida entre o dever de lealdade e sacrifício para com a sua arte, subestimando o seu real valor artístico ao aceitar, ainda que passivamente, os avanços sexuais do ministro, e o seu dever de lealdade e sacrifício para com o amor da sua vida.
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Quando no fim, o escritor, já depois da queda do muro de Berlim, dedica a sua obra ao agente que o salvou da detenção, eu julgo que nós não lho podemos dedicar juntamente com ele. E que não pode haver uma simpatia universal por aquele agente. O escritor deve-lhe algo, é certo, e é de um homem bom que reconheça os actos de bondade que para com ele foram cometidos, mas nós não lhe devemos nada, porque a acção do agente foi exclusiva para aquele caso e para aquele indivíduo e não uma acção por princípio contra as regras e os procedimentos gerais do seu próprio regime, não em nome de todos nós. Eu não dedico a visualização do filme ao agente.
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Mais do que uma reflexão sobre o modo como a arte pode incomodar a política, o filme mostra como a política, se exercida como um exercício do poder sem limites, pode perturbar até à insanidade a produção artística e os seus criadores.

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