segunda-feira, novembro 05, 2007

Dilaceração

Uma vez houve um polícia que disse à minha mãe que eu não respeitava a figura de autoridade dos polícias. Fiquei chocada.
É verdade que eu não aprendi a temer a polícia, vivi quase sempre em democracia, por isso olho-os nos olhos, e acato sem reclamar as suas ordens se eu as considerar, como adulta e cidadã livre e responsável, que há razões para o fazer, senão reclamo e protesto e contra argumento e... acabo multada. Como tudo se passa num plano de respeito mútuo de direitos sempre achei que estava muito bem assim: é um direito meu o de protestar com educação, é um direito do polícia, no estrito sentido do seu dever, multar ou repreender. Já não é um direito mútuo o de fazermos uso de tons de voz arrogantes ou permitir abuso de poder. E está, e não está.

De entre as histórias hilariantes com as brigadas de trânsito deste país que podia contar, vou escolher uma de tom trágico, e que nem sequer se passou comigo directamente. E isto numa forma de homenagear aquele polícia que um dia se sentiu subvalorizado pela minha atitude, ainda que de uma forma que não compreendo como a sentiu intencional (afinal eu só fiz uma manobra de marcha atrás na rua da minha mãe e que por acaso até é de sentido único, mas é que não vinha lá nenhum carro a circular e eu nem sequer reparei que estava ali perto um polícia de plantão: está certo, as regras existem para serem aplicadas, é simples).

A brigada de acidentes respondeu a uma de muitas chamadas. Era uma coisa pouca, quase nada, um toque leve entre dois carros num parque de estacionamento. Passa uma mota na Avenida ao lado em excesso de velocidade. Estava uma noite amena neste Novembro que vai desaforadamente quente. O polícia mais velho levanta os olhos e segue a mota, meneia a cabeça e começa a desfilar os horrores que o seu olhar já teve que ver, as suas mãos já tiveram que sentir, os seus ouvidos já tiveram que ouvir. “E eu que nem podia ver sangue... um homem habitua-se a tudo, não é? Muitas vezes julgo que não aguento. Ainda há noites em que não consigo dormir, imagens que não me saem da cabeça. Custa-me sobretudo quando os corpos ficam num estado tal que só podem ser recolhidos para dentro de um saco de plástico. Hoje mesmo vi imagens que resultaram de um acidente em que uma das vítimas apareceu decapitada.”

O horror de morrer dilacerado dentro de um carro, por debaixo de um carro, de encontro a um carro, de ficar estendido no chão. O horror de ter de assistir a essa violência. O horror de ter que permanecer de plantão, ainda que ninguém o veja. E o dever de ter que multar para ajudar, quem sabe, a apagar esse horror. Ou de o adiar um pouco, propiciando o fintar da morte numa estrada qualquer.


No A Vida Nova este horror é exemplarmente compreendido.

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