quarta-feira, novembro 07, 2007

A vida Nova: o indivíduo e a colectividade vistos pela perspectiva de um caramelo

Há objectos de consumo que definem a portugalidade. E são tão bem achados que podem servir mesmo como armas de arremesso por indígenas boçais de outras culturas. Lembro as sardinhas, por exemplo. Outras nações terão os seus produtos definidores da colectividade. São tempos prévios aos do consumo globalizado. Não são tempos melhores, nem piores. São outros tempos.


Um dia, na Turquia, o jovem Osman lê um livro, vai dizer-nos que esse livro lhe mudou toda a vida. É a sua história que Orhan Pamuk nos conta.
Depois de ler o livro, o de Pamuk, e não o que o Osman leu, nem eu, nem Osman, diga-se a bem da verdade, acreditamos sinceramente que foi um livro quem assim determinou a sua existência. Quem muda realmente a vida de Osman é uma mulher, a mesma que lhe proporcionou a leitura desse livro.
O livro lido é uma chave para um amor: o de Osman por Janan; esta, por sua vez, serve-se do livro como chave para o seu amor por Mehmet; Mehmet serve-se do livro como uma chave para um tempo que lhe permite como que suspender definitivamente o futuro, tornando-se um infatigável copista da obra. Não são amores com histórias felizes, os sentidos por Osman e Janan.

E o livro que Osman leu? Vale o que cada um projectar de si nele ou deixar que ele projecte em si. Como acontece com quase com todos os livros que as pessoas dizem ter-lhes servido para lhes mudar as vidas. Agora devia explicar a excepção que a palavra "quase" significa. Mas não explico. Assim como assim.

É um livro escrito nos tempos livres de um ferroviário, o Tio Rifki, que o intitula de "Vida Nova". Este livro dá conta da presença, entre os homens, de um anjo. Mas é sobretudo um livro que glosa todos os livros que Tio Rifki lera e que falaram de anjos. De Rilke a Ibn Arabi, passando por livros como o Corão, ou aquele escrito por Dante, o Vita Nova, os de Júlio Verne ou os de Nesati Akkalem, entre centenas de outros.



"O que é a vida? Um lapso de tempo. O que é o tempo? Um acidente. O que é um acidente? Uma vida. Uma vida nova. Era isso o que o meu estribilho me repetia." p.291.


O livro que Osman lê é um livro que recria todos os livros que o seu autor já lera. E quando Osman não desistindo de encontrar mesmo assim um sentido, uma continuidade mística entre todos esses autores mundiais, procura compreender como é que a imagem do anjo que ele persegue se substanciou no livro, procurando um mapa para o significado daquela sua vida, encontra o homem que produzira uns caramelos que se vendiam em todas as lojas do país quando ele era garoto pequeno. Uns caramelos que se chamavam precisamente "Vida Nova", embrulhados num papel onde estava sempre desenhado um anjo, e no qual estava escrita uma lengalenga que se queria quase sempre diferente de caramelo para caramelo.
E que sentido tinham esses poemas? Eram mais de dez mil pequenos truques publicitários, frases para embrulharem os caramelos e seduzirem ainda mais os compradores.
E o anjo, onde fora buscar a ideia do anjo para pôr no papel? Ao filme "O Anjo Azul" com Marlene Dietrich.


"Süryya bey, pelo meu silêncio, adivinhou a minha tristeza, graças a essa intuição própria dos cegos, e quis consolar-me: era assim a vida; havia o acaso, a sorte, havia o amor, havia a solidão, a alegria, a melancolia, havia a luz, havia a morte, mas também uma vaga felicidade; o que era necessário, sobretudo, era não esquecer; (...)", p. 284-285


O que resulta do livro de Pamuk? A confirmação da ideia de que "quem procura sempre encontra". Osman afadigou-se quase até à insanidade na procura de um sinal de presença de uma realidade metafísica que ele só entrevira através da leitura de um livro. E encontra-a.
E nesse encontro prova que se encontra o que se procura mas muitas vezes quando o deixamos precisamente de procurar. E não, o livro de Pamuk não vende espiritualismo de pacotilha.



Do livro resulta também uma grande defesa do individualismo. A oriente, quase entendido como uma ameaça, o individualismo é menosprezado como mais forma de vida impositiva de um ocidente colonizador. Num oriente que procura defender a sua identidade, conservando os seus objectos identitários em luta neste mercado ideológico e material mundial, ou, quando extenuadas as forças de convicção pela força da imposição desses objectos, que julga-se poderem ter o poder de arrastar aquilo a que se chama as atitudes e as ideias certas de nacionalidade, se opta então por um recurso indefensável como é o terrorismo.
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"Resumamos: eu tinha querido distinguir-me dos outros, descrever-me como um ser à parte, como um objectivo completamente diverso do dos outros, o que, no nosso país, é um crime imperdoável."p.287
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Esse crime, que para o ocidente é uma condição própria da existência, como é que pode ser compreendido e aceite numa comunidade como a europeia, a que eu julgo a que a Turquia deve pertencer? Muito trabalho há para os filósofos turcos. E pronto, sem arrogância cultural, muito trabalho há também para os filósofos ocidentais sobre este sentido da identidade. E para os teólogos. E muito esforço cívico para os jovens Osnan e Janan turcos.
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Afinal gostei muito do livro. A sua leitura não me mudou a vida, mas já do homem que mo ofereceu não posso dizer que não ma tivesse mudado.

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