domingo, janeiro 13, 2008

Casuística

À entrada de Rio Maior há umas bombas de gasolina. Quando entrei no escritório, para proceder à operação de pagamento com cartão pelo combustível de que acabara de ser servida, olhei com curiosidade a fotografia que sobressaía na capa de uma revista ali abandonada em cima do balcão: Manuela Moura Guedes montada num cavalo.
Estava em terras ribatejanas, é certo que terras de fronteira com as terras de Oeste, mas mesmo assim ribatejanas. Sei que nestas terras se pode sempre falar de cavalos, que se repara em cavalos, mesmo se a tradição de vender equinos nas feiras de Rio Maior terminara, na minha recordação, com o fim da minha infância, ou com o princípio das pestes, coisas a que eu me recuso a identificar como períodos coincidentes. A feira de Setembro, a das cebolas, aliás, é hoje um fenómeno fantasmagórico na mente de todos os que as conheceram imensas e populosas. Hoje é assinalada como uma coisa pindérica, desequilibrada entre a tradição saloia e a vida cosmopolita. Adiante. Comentei pois o belo cavalo de Moura Guedes. O funcionário que me prestava o serviço, reparando no meu interesse pelas coisas escritas em cima da mesa, foi senhor de extrema gentileza e desdobrou completamente o jornal que estava ao lado da revista. Manhã solarenga deste sábado de Inverno, o jornal era o "Correio da Manhã". Leio as parangonas que me anunciam o aumento de 15% nos terrenos em redor de Alcochete. Comento: "Então o novo aeroporto lá se foi para Alcochete...prejudica aqui a zona, não?"
"Que sim, talvez - responde-me o senhor - mas que os interesses do país vêm antes dos da região e já que diziam que ele não oferecia hipóteses de crescimento... então mais vale ir para onde ficar melhor." Sorri.
O funcionário é o dono de uma estação que podia ser a daquele anúncio antigo da Citroën "E eu aqui a vê-los passar...". A dita gasolineira, primeiro com o desvio da estrada do Norte para fora do centro de Rio Maior, e mais tarde com a construção do auto-estrada para o Porto, solidificou-se numa pasmaceira, e a terra só não definhara pelas razões aduzidas, porque a pecuária e a camionagem ali criara empreendedores, como agora se gosta de dizer. Cidade feiota, apesar das salinas e dos agradáveis montes à volta, mas sem desemprego, com razoável nível de vida e com uma enorme fuga ao fisco na forma florescente, até agora, de diminutos negócios familiares.
..
À tarde, num escritório imobiliário, converso com um empreiteiro que conheci miúdo magrinho a acompanhar-me nas minhas cavalgadas pelas redondezas de uma aldeia de Rio Maior com uma sua bicicleta todo o terreno com a qual operava manobras de uma perícia que nem eu, fraca cavaleira, nem a minha dulcíssima e nobre égua Deméter ousávamos, ou desejávamos, copiar. O miúdo transformou-se num jovem adulto com pinta de jogador de futebol da liga inglesa. Não o conhecia já. Apresentou-se, e da minha memória retirei a criança sorridente, filho de primos de primos, amigos meus lá dos bailaricos de província, que por vezes cruzava trilhos nos pinhais na minha companhia, ou eu na dele, vá-se saber quem tomava conta de quem, a adulta do rapazinho ou este dela. A conversa caiu na notícia do novo aeroporto. Posição crítica e veemente a do rapaz. Falo-lhe do interesse nacional, responde-me com o interesse das pessoas que durante onze anos, e sublinhava, "onze anos", não tiveram autorização para construir o que quer que fosse nos terrenos que lhes pertenciam, pois a todo o momento se aguardava uma decisão de construção de uma infra-estrutura que podia reclamar todo o terreno disponível nas redondezas.
..
"Imagina - pediu-me ele - o que foi para todos os jovens que quiseram construir a suas casas ao pé dos seus pais, em terrenos de família, e se viram obrigados, pela contingência, a ter que ir comprar terrenos ou comprar habitação fora das aldeias onde moravam os seus parentes. Achas bem que essa gente agora não tenha nenhuma contrapartida ao sacrifício e à inconveniência de ter as suas terras sob resgate do estado durante mais de uma década?! Não achas que há que pagar-lhes indemnizações por essa expropriação sem retribuição ou finalidade?"
Acho. O interesse nacional e o interesse individual devem ser mantidos sob equilíbrio numa sociedade justa. Pois se é verdade que quem sabe da sua tenda é o tendeiro, já o político tem que saber das tendas todas e precaver todo o tempo ou então ir montar tenda para o deserto.

Sem comentários: