quinta-feira, maio 15, 2008

"cartas a uma ditadura"

Um bom documentário. Gostei muito. Mas sai-se a pensar onde é que os líderes democratas falharam, pois que não conseguiram criar um imaginário tão poderoso, ou mais ainda, como o do fascismo, e que tivesse sido capaz de reunir em defesa das suas ideias a força de todas aquelas senhoras num pós vinte e cinco de Abril.
Não temos a certeza que sejam atavismos sociais pela sua parte ou antes uma defesa pessoal, caminhando para os lugares de conforto que conheciam e onde ideias grandiosas as embalavam, mesmo se ideias pseudo grandiosas. Repare-se como há uma senhora que revela a sua vontade de sempre ter crido que estava destinada a fazer algo pela pátria; como essa concepção é fecunda para o seu imaginário político.
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A democracia portuguesa envergonhou-se desse sentimento (a bandeira, entendida como apelo emocional e identificativo de um desejo e de uma comunhão nacional à volta desse desejo, só vai aparecer nas janelas décadas depois e por razões de futebol), a sociedade civil deixou aos militares a defesa desses valores e envergonhou-se de falar na pátria. Escondeu esses sentimentos. Ora quem vinha fortemente marcada por esses valores, ou por essa linguagem, não encontrou lugar depois, nem se deixou seduzir pela nova linguagem e o que ela antevia de realidade criativa na sociedade. E devia ter-se pensado na socialização dos que tinham vindo com fortes estruturas mentais enquadradas pelo antigo regime, devia ter havido um cuidado maior em explicar a revolução e os seus valores civilizacionais aos que a temiam ou aos que estavam enquadrados por uma linguagem e por uma acção que lhes dava uma espécie de segurança, aos que a desconheciam, enfim.

Atente-se no cuidado com a iconografia que o anterior regime tinha, não falo de propaganda coadjuvada por censura, mecanismo forte de condicionamento mental, mas na própria ideia cénica à volta do ditador. Aquela cena de Salazar a despedir-se das suas pupilas no meio de um campo de milho(?), afastando-se depois pelo meio de um caminho rural com o seu chapéu de chuva aberto a protegê-lo do sol, filmado ao longe e de costas, é uma imagem fortemente cinematográfica. É uma projecção de ideia de homem que toca o imaginário (e deve ter sido isso que a realizadora nela viu, ao mantê-la como registo no seu próprio documentário).
Aquelas mulheres não eram tolinhas, como podemos apressadamente julgar, pois para além de muitas terem escrito cartas por razões estratégicas (veja-se o caso da senhora costureira de província que percebeu que há actos sociais numa ditadura que têm que ser cumpridos mesmo sem se saber para quê, para que outrem nos deixe em paz a prosseguir uma vida de trabalho), houve aquelas que efectivamente temiam a agitação causada pela campanha de Delgado, como se teme o que não se conhece e se pensa ser o anúncio do fim da única ordem reconhecida ou se ama o poder que submete e domina.

Foi pena não se ter falado com aquelas outras mulheres que aproveitaram para escrever mais sobre elas do que sobre a sua adesão à causa. Impressiona a carta da mulher que se oferece como em sacrifício ao Deus cristão pela vontade de ter um filho. Sobreviveu à gravidez de risco? Encontrou o sentido da sua vida na vida do/a seu filho(a)?

Excepto a senhora com que termina o programa, a trabalhadora que se descreve como vencedora na vida, estando bem sintonizada com a realidade presente, todas as outras mulheres vivem ainda como que encapsuladas, em gestos recatados (é comovente ver a senhora que puxa o seu vestidinho para cobrir os joelhos, é aflitivo ver aquela outra que cicia, meio temerosa, contida nos gestos). Há depois a bela senhora que observa o mundo do seu magnífico edifício solarengo e que sonha ainda com uma entrega heróica da sua pessoa a uma ideia de grandeza pátria, sem se decidir a agir nas formas que o mundo hoje lhe dá. Cheia de reticências dentro de si. Como se eternamente ficasse em suspiro. Ou aquela, a mais idosa, que não tem complacência para a nossa época e com energia a nega, ressentida.

É um documentário bem enquadrado historicamente, de grande simpatia pessoal para com estas mulheres, ainda que se procure compreender com algum distanciamento teórico o que viam elas num homem e numa causa que tanto contribuiu para a subalternização do poder político do papel da mulher e para a paralisação de um país.

A evocação das energias de uma nação é uma das qualidades que qualquer discursos democrático terá que contemplar, para que a democracia não seja apenas uma forma de governo, um mal menor na história do poder, mas antes uma forma vivificadora da existência do indivíduo no mundo enquanto cidadão. Se a democracia não dá por si só a felicidade a ninguém na sua vida íntima, terá que lhe dar a base suficiente para ser reconhecida como a única forma verdadeiramente defensável e pela qual vale a pena imaginar mundos e vidas públicas.


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Uma colega de sessenta anos que assistia comigo ao filme saiu muito irritada porque não conseguiu ver onde estavam retratadas as mulheres que durante a ditadura clamavam por mais cultura, mais educação, mais liberdade. Tive que lhe explicar que não era um filme sobre mulheres da oposição ao regime, mas um sobre mulheres apaixonadas pelo regime, e que era essa estranha paixão que se tentou compreender, não só porque tinha existido, mas saber se ainda se mantinha acesa. E, como vimos, está longe de estar extinta. O que para a democracia portuguesa é um pouco menos que uma limitação imensa da sua energia, é um grande desperdício social.

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