segunda-feira, agosto 11, 2008

convenção

Partindo do princípio que a nossa linguagem é uma convenção, o que há então da nossa linguagem pessoal que não seja em si uma convenção imposta por um dos múltiplos grupos da nossa socialização? O que há então de original, de pessoal e de único num ser que fala mas não inventa conceitos, apenas os repete e para mais num cruzamento reduzido entre si de vocábulos? Quem somos de facto, nós os que falamos e proclamamo-nos como de uma identidade, para além do que socialmente é expectável que sejamos? E o que de rebeldia relativamente a esse facto não passa de propensão para a delinquência por preguiça, obstinação na contrariedade como marca, ou mera sujeição a outra forma de existir, dita alternativa? Que parte do meu eu, por exemplo, não é o de todos os outros que possam reclamar um relacionamento comigo? Quem me dá as palavras para a voz da minha consciência? Qual a fonte que me permite dizer que concordo, ou que não aceito, que sei, ou que ignoro? Mais... quem tem o poder de mudar o meu comportamento, de alterar o meu estado de espírito e de exacerbar as fraquezas e vilanias ou as consistências benfazejas do meu carácter?

Naquele tempo tínhamos que ler o Vol de nuit de Saint-Exupéry em francês. Eu lia o livro como que tem uma dor de dentes mansa que mói mais do que dói. Um dia, no intervalo das aulas alguém do liceu me passou para as mãos a tradução do livro em português. Lia as sensações do piloto sobre uma fuselagem tremente e o meu cérebro tremente de prazer pelo ganho de sentido.
É em português que eu sinto o que os outros dizem que sentem. Mas não preciso da língua para entender a dor que pode afligir outrém. E sobre a dor das pessoas eu não me questiono pela sua legitimidade. Será verdade isto? E se eu ousar e afirmar a natureza convencional da dor? Eis como se pode praticar o mal, ou justificá-lo. O atrevimento sem causa.

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