quinta-feira, outubro 09, 2008

Desviamos os olhos um segundo e...

coisas acontecem. Algumas risíveis: a nossa criança ganha cotão debaixo das unhas que se transformaram em garras, o cabelo cai-lhe esfarripado sobre as orelhas e os olhos, as calças que julgávamos limpas descobrimo-las, à luz crua da manhã, à porta da escola, que têm nódoas, que até já cresceu uns centímetros e adquiriu um vocabulário novo do qual não reconhecemos o léxico. A casa acumula livros e jornais, as roupas ficam por arrumar, o ar por arejar. Um segundo e a vida desatina. A vida que controlamos civilizadamente há séculos e nos permitiu sobreviver erectos, a vida segura dos rituais de conforto e de segurança. Outras vezes coisas acontecem de forma trágica. Alguém morre e uma ideia de nós com ela, ou mesmo nós com ela, ou um alívio pela sua morte que há-de um dia confundir-se com um alívio para alguém pela própria hora da nossa, e que começa então a insinuar-se connosco; alguém nos atraiçoa e uma ideia de eternidade vai com ela, ou, muito pior, atraiçoamos alguém, e nem uma ideia de culpa nos amortece a queda, porque não estamos mais por ela, ou não estamos mais por nós com ela.

Na crise económica, ou política, como podemos não desviar os olhos, nós que não sabemos olhar sequer para o que vemos? Sabemos nos entanto que os economistas que temos e os políticos que temos, os que ouvimos pelo menos, não estão a dizer nada que seja confiável, que seja uma linguagem nova, que invente uma solução, ou que exceda uma resolução que não passe pela do tempo que há-de correr. Porquê esperar na resolução que há-de vir com os outros? Deve ser o síndrome da princesa indefesa e aprisionada na torre à espera do seu princípe, alimentado por séculos de governos políticos que premeiam a menorização das gentes.
Não sei explicar o tempo, mas compreendo o que é o tempo, dizia-nos Santo Agostinho. É o sentimento semelhante da população, julgo eu, que não sabe explicar porque não acredita nas explicações e nas soluções dos economistas e dos políticos, mas sabe que não acredita.

Qualquer pessoa reconhece o trabalho infindo, mas eficaz para a estrutura de uma família ou de um indivíduo, que resulta da necessidade de manter uma casa limpa e arrumada, refeições equilibradas, actos sociais de convívio, um sistema qualquer em estado funcional, um ritmo previsível para a existência, pois que entre o caos e a ordem a fronteira é uma linha para o finito, um esforço individual e do grupo para assegurar a coesão, para resistir à indiferença, à frustração, ao desânimo, à impotência.
Al Gore refere os psicólogos que estudam o fenómeno dos vínculos do indivíduo ao grupo, para referenciar como um sistema que não premeia os seus concidadãos com o respeito pela sua perspectiva e/ou participação nas questões fundamentais está a preparar-se para ter como interlocutores indivíduos muito agressivos e violentos que porão em causa o próprio sistema democrático onde os dirigentes procuram encerrar-se.
Desviamos os olhos um segundo e... também nos acontecem coisas boas. O tempo relembramo-nos que não estamos no fim da história, pelo menos da colectiva. E às vezes até sabemos como pairar sobre os acontecimentos: Ai está a acontecer uma crise durante a qual os estupores dos gestores da AIG foram de férias com o dinheiro dos contribuintes americanos? Aí o meu governo continua a insistir num tom e num modo de governo monocórdico e que soa a falso? Ai o meu admirado escritor Baptista-Bastos está a braços com uma situação pouco ética? Ai, sim? É terrível, é, mas eu se calhar vou ali e já volto. Pelo menos uma coisa há-de acontecer entretanto: lá fora o tempo passou, cá dentro, só eu sei. Depois essa coisa de inscrição nos acontecimentos... bom, na prática como é?
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José Gil na semana passada e António Lobo Antunes esta semana escrevem textos memoráveis na revista Visão.

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