A aventura no Vale de Enid Blyton. É uma das histórias de Blyton que recordo melhor. Tudo me impressionou então, as comidas em lata (!), a catatua Didi (na minha escola primária havia uma catatua), a gruta atrás de uma queda de água (um clássico juvenil e de filmes de matiné), as grutas com as suas estalactites e estalagmites (associada à minha imagem da gruta de Santo António, hoje em dia uma sombra da importância turística que já teve, quase abandonada, e no entanto ainda tão fascinante), as perseguições (a oposição clara entre adultos malvados e crianças espertas, autónomas e competentes: uma parábola possível para um ideal do estado de infância), e, sobretudo, a existência de um tesouro roubado que era preciso encontrar e proteger. A aventura, enfim.
É o livro que estou agora a ler ao meu filho. E das páginas amarelas com a capa a descolar-se (o livro já pertencera a outra criança antes de mim, e ela escrevera-lhe na contracapa ser ele pertença do "clube da arma secreta". A minha mãe tinha-mo comprado numa loja de livros usados que se vendiam num átrio ali para os lados do Saldanha, expostos no chão. Pelo menos é assim que me lembro), dessas páginas chega-me inteirinha uma ideia certa de mim no mundo, que agora seduz o meu filho e o recoloca no mundo da aventura, o mundo verdadeiro para qualquer criança habitar.
Passa-se por certos comportamentos datados (não me tinha apercebido então que, das quatro crianças, era às meninas que cabia preparar os piqueniques e as camas, e aos meninos era esperado que fizessem as acções que exigissem mais força física ou destreza manual!). Uma pena, mas Blyton não fugiu totalmente ao estereótipo. Salve-se o facto de ela não fazer distinções ao nível das soluções encontradas e da resolução de enigmas, na inteligência entre rapazes e raparigas.
O resto é toda uma linguagem certa e rigorosa para transportar para a história, sempre bem contada, simples, com capítulos curtos e fazer crescer o suspense.
Penso na linguagem e nos mundos que essa linguagem abre. Não conheço bons alunos que não sejam bons na posse de uma linguagem. Os vigaristas também. Possuir uma linguagem, torná-la aceitável e impô-la como modelo, é uma forma de fazer mundos.
Em cada género de expressão oral e escrita abre-se a existência real a uma existência possível, se verosímil for a ideia potenciada pela linguagem, se apresentar o desconhecido a partir de um anseio conhecido. A criança não quer, e ao mesmo tempo quer, perder-se num vale e afastar-se temporariamente do conhecido e do familiar. O adulto não quer e ao mesmo tempo quer acreditar que o discurso em política o possa fazer acreditar que dele se espera uma aventura: a do respeito pelo indivíduo no espaço dos direitos e dos deveres sociais.
Esperam ouvir isso de quem? Ou só esperam fórmulas de ganhar um dinheirinho extra com a credulidade alheia para prosseguirem com os seus projectos de projectos políticos?
Também se pode pensar nos cidadãos a serem perseguidos por políticos escroques enquanto procuram o tesouro da repartição do poder em democracia. Uma trágico-comédia.
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