quinta-feira, abril 02, 2009

"The show must go on"

Sem cinismo sempre pensei seriamente que em qualquer circunstância o espectáculo agendado deve continuar, mesmo que o circo esteja a pegar fogo.

O circo foi dos primeiros espectáculos feéricos que vi e de todos o maior. Eram circos itinerantes que acampavam nas feiras de província nas férias lá na aldeia da minha infância. Eu não recordo animais maltratados, que os devia haver, nem pobreza dissimulada pelas lantejoulas, que talvez houvesse, ou falta de jeito e de profissionalismo de alguns intérpretes, porventura visível. O que recordo era uma multidão a encher a tenda, em semicírculo à volta do recinto onde se fazia acontecer coisas, as luzes e os cheiros dos animais, a música e os palhaços - o deslumbramento.
Hoje em dia só escapa à política quem esteja muito apaixonado por alguém ou por qualquer outra coisa. Ela tornou-se o grande circo da aldeia global e convoca-nos a aplaudir, e em teoria a aceitar a legitimidade do apupo sem ressentimentos, mas também nos convoca para o número das feras amestradas em nome de sentenças sobre o estado da democracia por parte de seres amantes da doutrina do poder visível e musculado e que escondem os seus intuitos por entre as liberdades dadas pela própria democracia.
Também os há a procurarem soluções dentro do quadro que é previsível pensar: derramar dinheiro para deixar o mesmo estado de coisas a funcionar. O mesmo que nos tem protegido a nós no Ocidente, e na miragem do qual os que morrem afogados a caminho da Europa testemunham com a sua vida.
Obama passeou a sua elegância pelos corredores do poder dos G20. Caminha a dançar. É bonito de se ver, esse andar de menino do Havai. Deveras. Bom, e o que disse ele? Coisa que eu profundamente defendo e que fica bem em qualquer carácter político com imenso poder de facto "procurar o consenso ao invés de ditar os termos". Claro que os há-de ditar, mas sem um
M1 Abrams a sair-lhe ostensivamente da algibeira. Eles não precisam de ser mostrados para que saibamos que eles lá estão. Mas fica bem não ostentar esse, digamos, recurso argumentativo.
E disse também o presidente americano que há que reforçar a capacidade financeira do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio e do Fundo Monetário Europeu. Tudo coisas que pensamos, eu penso, terem sido pouco recomendáveis e de servirem agendas que não as do interesse comum. Mas estas instituições estão para os economistas como a ONU deve estar para os teóricos da política dos direitos humanos: são males necessários, porque para sobrevivermos precisamos mais delas do que do seu vazio.
O espectáculo deve continuar, pois. Porque a vida é mais importante do que a morte em nome do que quer que seja, a não ser por amor a um ser.
Ontem uma aluna perguntava-me porque não eram os governantes portugueses como os presidentes americanos no que ao tipo de acção discursiva diz respeito. Fazendo notar a existência de diferenças entre eles, apesar de tudo sugeri três factores a contribuírem para uma possível caracterização comum: cultura e organização política da sociedade em causa; educação universitária a prepará-los para a defesa de ideias através de discursos argumentativos e a influência da tradição ideológica "recente" dos pais fundadores, fundo simbólico muito propiciador da criação política.
Esqueci-me de enunciar uma coisa: a possibilidade real de nesse país se poder falar com muitas pessoas inteligentes sobre os assuntos que interessam em política.
Lembrei-me hoje disto ao ouvir a resposta de António Damásio à pergunta de Judite de Sousa sobre a razão porque continuava a investigar nos EUA há já trinta anos. Dizia ele que era sobretudo porque lá podia falar e encontrar-se com pessoas inteligentes que se interessavam sobre os temas por ele estudados, e procurarem assim soluções para os problemas. Assim. Quer dizer, haver pares que se estimam, apesar da competição, e se ouvem.
Olho para a nossa escola e para a nossa universidade e penso...há que continuar, há que criar número e talvez um dia, o maior espectáculo do mundo, o da inteligência, se torne um dado adquirido nas equipas a constituir para a investigação portuguesa em qualquer área.
E, quem sabe, tenhamos um dia um presidente que anda como quem dança.

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