sexta-feira, novembro 27, 2009

"Ópio democrático"

"As escutas permanecem no limbo judicial, os escutados remetem-se ao silêncio e o país entra na mais patética estagnação lorpa.

Agora vem o governador do Banco de Portugal e sugere que a crise orçamental obriga a uma subida de impostos. Logo o primeiro-ministro desautoriza o governador e sossega a nação garantindo que os impostos não sobem. Não satisfeito e pleno de reverência institucional, o governador recua e confirma a desautorização. Portugal está transformado no país das meias verdades e das meias mentiras, tudo coberto por uma enorme nuvem de ópio que envolve uma multidão de gatos pardos.

O país está mais do que endividado, o ‘deficit' alcança uma liberdade descontrolada, a despesa espreita com uma rigidez metálica, o desemprego prospera e o crescimento económico é o pequeno polegar da família nacional. Mas na aparência, Portugal vive no mundo optimista do dr. Pangloss onde tudo é normal e onde tudo corre de acordo com um plano perfeito. Diga-se que o país está quase falido, parado e estático no lado curvo de um espelho que tudo deforma e transforma.

No centro da comédia democrática, os portugueses exibem uma passividade chocante, talvez fruto da miséria ou do medo de um futuro desgraçado. Enquanto o primeiro-ministro passeia o optimismo voluntarista de sempre, o país cai numa letargia política em que a realidade é substituída pelos sonhos pacíficos e psicadélicos do ópio. Mas já não é o ópio dos intelectuais em busca da religião do progresso, apenas uma peculiar imobilidade associada aos movimentos mínimos da resignação.

No Portugal democrático não existe pessimismo, nem crítica, nem palavras ou actos de revolta. Quanto ao PSD, vegeta entretido a devorar as próprias mãos. Quanto à Esquerda radical, agita-se no vácuo de uma agenda social. No entanto, subsiste uma lamúria longa e lenta que cobre a terra de norte a sul. Em versão imaginada, Portugal é a bela adormecida que espera eternamente pelo beijo redentor. De tanto esperar o país atrasou-se em relação à Europa e arrisca-se a perder o ‘timing' do desenvolvimento e do progresso.

Portugal é dominado por uma interpretação escolástica da política e do estado geral da nação. Primeiro vem a ideia de que o país nunca perde no concerto internacional. Depois vem o argumento da falta de sorte que contrasta com a injusta felicidade dos outros. Depois surge finalmente a dúvida logo dissipada com a convicção de que Portugal é um país diferente dos restantes e que se rege por um conjunto alternativo de valores.

Falta a coragem para olhar uma realidade falida e decadente e afirmar que algo de errado se passa em Portugal. Esta é a responsabilidade da política, esta é também a responsabilidade dos portugueses."


Carlos Marques de Almeida in Diário Económico

3 comentários:

Teresa Marques disse...

Após mais de 100 anos o diagnóstico mantém-se:

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio,fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora,aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias,sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice,pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;
um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai;
um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom,e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional,reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula,não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima,descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas,capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação,da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo;este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,tornado absoluto pela abdicação unânime do País.

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.


Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos,iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero,e não se malgando e fundindo, apesar disso,
pela razão que alguém deu no parlamento,de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, 1896.

Não (re)conhecem este país?

Isabel Salema Morgado disse...

Querida Teresa.
Ai Teresa que nem um abraço longo parece poder aquecer-nos neste Inverno que é mais de infâmia e descrença que de descontentamento. Para quem é mais difícil assitir a este rol de políticas do que para pessoas que acreditam em princípios de igualdade de oportunidades tanto quanto no da liberdade e equidade? Que acreditam tanto no poder de políticas públicas quanto no absoluto respeito pela liberdade individual? Para quem acredita na necessidade de um Estado como estrutura reguladora, mas um Estado que seja pequeno e sustentável?
Pasmei com o texto de Guerra Junqueiro, que não conhecia. Mas pensei que ele ainda tinha a esperança que uma mudança de sistema político e de regime trouxesse algo de novo. E nós, o que temos nós que nos faça levantar do chão?
Leste o post do blogue "Almocreve das Petas" de Quinta-feira, Novembro 26, 2009, dedicado ao bravo Fernado Vale?
Um cidadão da (também) nossa Beira, Teresa. Um cidadão lá do torrão. Senhor que assistiu. e valeu, ao sofrimento.

Paraliso com tudo o que acontece agora, Teresa, e já não vou tendo idade de continuar a iludir-me.
Beijo de saudação para ti. Gostei do moinho.

Manuel Marreiros disse...

Este blog está muito bom!

Parabéns á doutora Isabel Morgado