quarta-feira, dezembro 06, 2006

Revolução e pobreza 5

Em 1776 os tios da América não eram todos ricos. Existia um grupo de trabalhadores que nem miseráveis se poderiam considerar, visto que nem a liberdade para o poderem ser tinham então. Eram os escravos. Arendt interroga-se como foi possível numa terra em que verdadeiramente não havia hordas de pobres, como na Europa, mas tinha um sistema social assente na infame escravatura, não ter havido também uma revolução da “necessidade”, como iria acontecer em França, mas sim uma revolução da “liberdade”. Chega à conclusão que a escravatura não tinha visibilidade como situação social a reparar. Como se de uma não realidade, logo invisível, se tratasse. Enquanto que a invisibilidade para a pobreza estava a ser lentamente ultrapassada no velho mundo, pelo esforço colectivo dos pobres em se manifestarem, e, sobretudo, pela descoberta feita por parte de alguns teóricos da importância social e política de se considerar a pobreza como um resultado social e político passível de ser mudado, criando assim a obrigatoriedade de ver esse estado de miséria como algo não natural, que começava a tornar impossível aos governantes não repararem nas situações deploráveis em que milhares de seres humanos subsistiam. Este factor, “o da revolta da barriga”, o da submissão da liberdade à satisfação da necessidade, e um outro, o factor herança histórica, que potenciava a falta de preparação prática para o exercício das suas ideias, teriam estado na origem das causas que explicam experiências revolucionárias tão distintas.
Enquanto na América o povo já formava assembleias de cidade, mesmo quando sob o domínio da coroa inglesa, assembleias onde aprendiam a desenvolver o gosto pela discussão, pela deliberação e a fazer uma escolha de decisões, formando assim os seus futuros representantes na arte do negócio público, onde os mais notáveis sobressairiam no exercício argumentativo (porque herdeiros de uma história que privilegiava agora a acção governativa de uma monarquia limitada), em França, as ideias sobre a sociedade e a política nunca tinham sido experimentadas (eram herdeiros de uma concepção absolutista de governo, o regime precedente era o de uma monarquia absoluta), não surgiam de uma prática e não eram sujeitas a debates, não se procurava negociá-las em público com todos os interessados (para Arendt a Assembleia Francesa não consistiu no laboratório necessário para a democracia, porque os valores ali evocados não eram o de privilegiar a discussão e a deliberação popular, mas valores que procuram recuperar, imitando-os, os valores republicanos romanos, cujas instituições políticas eram tão admiradas pelos homens de letras de setecentos). (pp. 141 a 172)
Arendt explica a revolução americana como o tempo em que se procurou fundar um corpo político que garantisse haver espaço para a paixão da liberdade pela liberdade (p.153), onde não houve a necessidade de confundir libertação com liberdade, em que a revolução se tornasse ela própria não um meio mas um fim em si mesma.
A revolução francesa, e as revoluções que lhe seguiriam o modelo, assumir-se-iam como lutas pela libertação.
A revolução americana assumir-se-ia como o método de estabelecimento da liberdade pela instauração de um governo constitucional (com uma acção limitada pela lei).
Mas permanecem duas questões em aberto. 1. Não tendo sido a revolução na América assolada pela miséria dos seus cidadãos e dominada pela paixão dos pobres no início, poderão as suas instituições resistir agora à paixão duma sociedade virada sobretudo para os valores da produção e para o consumo? Arendt diz-nos que a este respeito existem tantos sinais de esperança como de receio. p. 169.
2. E como se instituiu o poder e a autoridade num regime que estava a criar-se de novo? Onde se foi buscar esse poder e autoridade, a que modelo?

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