segunda-feira, março 12, 2007

As crenças, ideias que se impõem como modelos de acção e de compreensão, reflectem ou criam a realidade em que vivemos?

Uma amiga de uma amiga minha conta que os pais nunca lhe quiseram narrar estórias míticas para explicar o que quer que fosse acerca dos fenómenos naturais ou culturais a que ela assistia. Por isso desde pequena sabia que o Pai Natal não existia, assim como também sabia que não havia um coelho ou um pintainho da Páscoa, nem a fada dos dentes, nem duendes matreiros que roubam a chucha e a levam para a floresta ou outros temas quejandos que o seu contexto cultural ocidental, como aliás qualquer outro no mundo, tem de sobra para preencher a infância de irrealidade. Nada de bruxas más, diabos assustadores ou dragões cuspidores de fogo, mas também nada de mouras encantadas, princesas e príncipes, nada de espadas mágicas ou animais que falam, tudo muito explicado de como as prendas aparecem na noite de Natal e os ovos de chocolate são escondidos para a caça ao tesouro na Páscoa. Ela lembra-se de ser a única criança que não acreditava em nada daquilo que as outras crianças acreditavam. E hoje está perfeitamente convencida de que acredita em tudo o que lhe dizem, por nunca ter apanhado os pais numa mentira como todas as outas crianças que sofrem o primeiro desapontamento por saberem que afinal aquela história bem alimentada durante anos era, afinal, uma perfeita mentira.
Não sei se a resposta para a questão de como evitar a credulidade ingénua está no pressuposto de que alguém em quem confiamos tem que nos mentir. Isso levar-nos-á a ser mais vigilantes e críticos, porquê? A crítica não nascerá antes do confronto de crenças livremente aceites e livremente postas à discussão? A crença não sairá mais fortalecida se reconhecida num quadro de discussão o mais alargada possível? Uma criança que acredita em todas essas narrativas infantis não pode comparar-se a um adulto que acredita num conjunto de outras narrativas/crenças. Porquê? A ele pede-se que as saiba legitimar com algo mais do que a explicação infantil: “Porque sim.” Ou “Porque a ou b me disse que era assim, e eu gosto muito de a ou b”.
Mas, se uma comunidade aceita os argumentos que defendem a minha crença, e se os partilha, isso torna a crença necessariamente verdadeira? E se eu não conseguir falar sobre a minha crença, se não conseguir manifestá-la senão pelo silêncio, isso faz com que ela seja falsa, por não ser partilhável numa comunidade de falantes que a avaliam? Mas o silêncio não é inexistência da palavra, é um sinal da sua ausência pública. Daí que Lyotard acredite que as vítimas, por não conseguirem falar sobre o horror, ou a violência, a agressão a que foram sujeitas, possam permitir criar realidades falsas sobre a ausência de testemunho de uma dor que é verdadeira. Todos os regimes políticos sabem que é na luta pelo controlo dos testemunhos que se ganha as crenças, os regimes totalitários sabem-no absolutamente.
Lyotard, Jean François, Le Différend, pp. 30 a 37.

2 comentários:

Anónimo disse...

“Criança de fronte sem nuvens
E olhos cheios de sonho e encantos,
Apesar do tempo veloz
E de estarmos separados por meia vida, eu e tu,
O teu amoroso sorriso certamente acolherá
A prenda de amor de um conto de fadas.”
Lewis Carrol in Through the Looking Glass (O outro lado do espelho)

Segundo Bruno Bettelheim em Psicanálise dos Contos de Fadas: “Os contos de fadas, ao contrário de qualquer outra literatura, orientam a criança no sentido de descobrir a sua identidade e vocação e sugerem também as necessárias experiências para melhor desenvolverem o seu carácter.”
(…) Hoje, como em tempos idos, a mais importante e mais difícil tarefa na educação de um filho é ajudá-lo a encontrar um sentido para a vida. Para se conseguir isso são precisas experiencias de crescimento.(…)É aqui que os contos de fadas têm um valor ímpar, porque oferecem à imaginação da criança novas dimensões que seria impossível ela descobrir só por si. Mais: a forma e a estrutura dos contos de fadas sugerem à criança imagens através das quais ela pode estruturar os seus devaneios, e com isso orientar melhor a sua vida.”


O poeta alemão Schiller escreveu: “Existe um sentido mais profundo nos contos de fadas que me foram contados em criança do que na verdade que a vida ensina”

A imaginação de uma criança é um mundo com uma riqueza inesperada em imagens que a ajudam a interpretar a vida real, a compreendê-la, a descodificá-la… Os adultos mais não devem que saber ler essa linguagem, quase mítica, e com um sorriso entendê-la como o meio ideal de comunicar com os mais pequenos…

Não há nada mais maravilhoso do que procurar um bruxa debaixo da cama, atrás da porta, ou por detrás dos cortinados, altas horas da madrugada, completamente atordoado pelas medos de uma pequenota de 5 anos… que, inesperadamente, limpa as lágrimas determinada e afirma convictamente “Ela foi-se embora, pai, porque teve medo de ti!” Que melhor acto heróico poderá haver aos olhos de uma filhota?

E esta crença de que alguém (ou até nós próprios) nos pode livrar dos perigos e feitiços da vida são fundamentais para se crescer confiante no Futuro!

Para sermos adultos saudáveis é fundamental que a nossa infância tenha abarrotado de fantasia e imaginação...

Só assim poderemos saber o que fazer perante um "lobo mau" da vida real... e saber reconhecê-lo no meio dos seus disfarces do dia a dia...

Uma criança não é um adulto! (e ainda bem…)

Anónimo disse...

“O conhecimento do conhecimento ensina-nos que apenas conhecemos uma pequena película da realidade. A única realidade que é cognoscível é co-produzida pelo espírito humano, com a ajuda do imaginário. O real e o imaginário estão entretecidos e formam o complexo dos nossos seres e das nossas vidas. A realidade humana em si mesma é semi-imaginária. A realidade é apenas humana, e apenas parcialmente real.” Edgar Morin, in 'Os Meus Demónios'

“Nenhuma realidade é mais essencial para a nossa autocertificação do que a história. Mostra-nos o mais largo horizonte da humanidade, oferece-nos os conteúdos tradicionais que fundamentam a nossa vida, indica-nos os critérios para avaliação do presente, liberta-nos da inconsciente ligação à nossa época e ensina-nos a ver o homem nas suas mais elevadas possibilidades e nas suas realizações imperceptíveis.
Não podemos melhor aproveitar os nossos ócios do que familiarizando-nos com as magnificências do passado, conservando viva essa recordação e, ao mesmo tempo, contemplando as calamidades em que tudo se subverteu. A experiência do presente compreende-se melhor reflectida no espelho da história. O que a história nos transmite vivifica-se à luz da nossa época. A nossa vida processa-se no esclarecimento recíproco do passado e do presente.
Só de perto, na intuição concreta e sensível, e prestando atenção aos pormenores, a história realmente interessa. Filosofando procedemos a considerações que se mantêm abstractas.” Karl Jaspers, in 'Iniciação Filosófica'

Então, mas porque é que nunca aprendemos a olhar o espelho do passado e, teimamos, repetidamente, os ciclos da História da Humanidade?