segunda-feira, abril 23, 2007

Um homem sem voto

Perante a dor dos outros, qualquer outro, fico paralisada. Eu só tenho palavras, umas quantas, e duas mãos que se dão às outras mãos. Mas quando a dor não suporta, ou não lhe chega, a palavra ou o toque de uma mão, eu paraliso. Nessa jornada de acompanhamento da dor de outrem, em que se pode passar da perturbação à impotência num segundo, o que nos resta fazer a nós que não temos conhecimentos médicos?
Deve ser por me sentir perante essa dor como perante uma nudez absoluta desse outro, a qual reclama, em contrapartida, a minha absoluta nudez. Nudez de que me falava um livro de que desgostei imensamente mas que não esqueci, um livro de William Reich. Li-o há umas duas décadas atrás, para uma aula de psicologia no liceu. Chamava-se o livro Escuta, Zé Ninguém!
Volto a folheá-lo pela primeira vez nestas últimas décadas. Nem um sublinhado a provar que foi lido com aplicação. Só o recorte incerto de algumas páginas que na edição tinham ficado coladas e foram abertas com uma faca a provar que por ali alguém passara. Essa mania de colar páginas que algumas editoras tinham então e ainda, e que era motivo de tanto aborrecimento por atrasarem a minha leitura... Às vezes dedicava-me primeiro a abrir as páginas todas de seguida, com frenesim, para depois poder então dedicar-me à leitura descosida, solta. O pior era quando ficava esquecida uma página coladita, logo ali no meio das outras todas obedientemente abertas. Que desabar de frustração. Que resignação. Nunca percebi o interesse desta técnica, ou sequer o motivo de algum gosto nela, a haver. Mas havia sim quem se dedicasse a essa actividade com profundo prazer. Sim, havia uma amiga que não padecia com esse ritual. Pelo contrário, exaltava a prática. Eu suspirava. Imagine-se os livros das Edições Brasil, todos ali de páginas, pouco generosamente, coladas… que tortura. Ainda que, irónico alívio, a maior parte dos livros que eu lia então proviessem da biblioteca dessa minha amiga, logo já vinham abertos: em dupla oferenda.

Já nem me lembro porque não gostei então do Escuta, Zé ninguém! Deve ter sido um tom, uma estridência, terá sido pois pela forma que se terá afectado a minha consciência estética, ou lá o que quer que tivesse sido, porque o conteúdo, é inegável, impressionou-me até ao ponto de eu hoje reclamar a sua presença para explicar a minha ausência nestes últimos dias.

“Mas eu entendo-te. Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara, sem opção, sem voto, sem aquilo que faz de ti “membro do povo”. Nu como um recém-nascido ou um general em cuecas.” p. 22

Mas quando vemos os outros sem máscara, sem opção, nos limites dos limites das suas forças e da suas existências, que máscara não estaremos nós a depor também? Quando nem a razão ou a intuição nos ditar o que fazer perante o inadiável dos inadiáveis com longo caminho pelo sofrimento, o que podemos fazer-lhes?
Eu leio as Cartas a Lucílio de Séneca. Como se fosse uma estóica. Reinvento a máscara.

2 comentários:

Anónimo disse...

Sinto-me honrado em abrir o comentário desse maravilhoso post.

Se a dor referida for tão somente física, e mesmo assim uma dor profunda, lancinante e insuportável, não há nenhuma dor que resista a uma boa dose de morfina. No entanto, se se tratar de uma dor espiritual, o que requer uma alma altamente resiliente e perfumada, é necessário, tendo em vista a magnitude da dor, porque dor de alma é mil vezes mais intensa, uma grande dose de amor, piedade, altruísmo e empatia. Conserve o olhar piedoso e suas mão postas sobre as mãos da alma aflita e nada diga...somente sussurre seus próprios aís como um eco, um espelho refletindo o sofremento dos zés que por ventura encontar sem ninguém.

Abs.

Isabel Salema Morgado disse...

Obrigada.

isabel