quinta-feira, agosto 30, 2007

duração 2

Quando alguém morre, e a fazer-se uma exortação sobre essa personalidade, o discurso de apresentação/aclamação da vida de outrem transforma-se muitas vezes numa exortação da nossa vida passada com o morto, por convivência social ou cultural. É preciso um grande espírito analítico ou um distanciamento académico ou social para que o discurso sobre o morto seja sobre a sua vida ou obra, e não sobre a nossa vida e o modo como sentimos que o morto passou por nós então.
Quando choramos uma morte, e um morto geralmente leva a um choradinho, fazemo-lo também por ele, mas muito por nós na ausência dele, também por uma ideia dele e de nós, por alívio, por saudade, ou o que for. Mas há um choradinho por algo que passou e já não volta: a nossa própria vida passada que a morte dos outros nos faz carpir. E esta experiência não requer conhecimento profundo, analítico, da obra, ressalvado tão-somente que a pessoa viva fale sobre si no modo como o foi quando o morto ainda era vivo e passou por si. Mas não sendo complicado também não é assunto fácil. Daí que a presença excessiva do eu em artigos que foram escritos para serem sobre a morte do outro seja uma forma de homenagem não menos cuidada ainda que pouco lúcida. Há quem se irrite com isso, quem ache tudo uma pirosice de egos que não sabem sentir nem sabem escrever o que sentem, apropriadamente. Eu vejo um bom momento para lamentar, quase o único no universo das lamentações que não nos cobrirá de vacuidade, um momento próprio para fazer um choradinho sobre o tempo que fez, para falar do outro falando também de nós que lhe sobrevivemos e o contamos em voz alta. E não deixa de ser uma forma de homenagem, nem deixa de ser sincera, é o que é, uma viagem mais por aquilo que geralmente nos interessa mais e melhor: nós mesmos.

Eu leio Séneca frequentemente. E tanto ensinamento de desapego também arrelia. Mas não deixa de ser uma forma de nos ensinar a ser mais livres perante essa coisa de se morrer.

Um destes dias fui visitar as casas onde viveram os pastorinhos de Fátima. As origens humildes, em tudo conformes ao modo de vida de toda uma imensa maioria de população no Portugal pobre e rural do início do século XX, não me surpreenderam, ou mereceram reparo sociológico. Eram formas de vida que sei de cor de um tempo que foi também o modo de viver partilhado com os meus antepassados. Vi as casinhas de Francisco e Jacinta, os irmãozitos, e a de Lúcia. Não são as casas como espaços museológicos curiosos que poderão interessar a quem ali vai, ou não isso apenas, mas interessará sobretudo a forma que as manifestações do sagrado pode tomar, e como irrompe em tais espaços. Não o sagrado que é contado ou investido em nós por outrem em rituais de actualização da presença de uma crença em nós, como acontece com todos os cristãos, por exemplo, no acto do seu baptismo, ou no momento da comunhão, mas o sagrado que se manifesta pela primeira vez no contacto directo com a pessoa, em tudo muito novo, mesmo havendo contornos religiosos de uma história conhecida previamente e que contextualiza a aparição.

Sobre a crença dos pastorinhos eu creio profundamente que eles criam, e mais não sei dizer. Não sei mesmo. Aleivosia dos que não crendo julgam que não aconteceu nada que leve os outros à crença. Sobre a aparição da Nossa Senhora de Fátima o que se poderá dizer mais para além das três hipóteses: “creio”, “não creio”, ou “não sei em que crer?”. Dizer que essa aparição é uma invenção fantasiosa daquelas crianças? E como sabe-lo que o foi? Dizer que ela nunca existiu? E quem o pode comprovar?

Sei que há uma história das religiões, e que ser-se cristão, ou budista, ou muçulmano, não é todavia equivalente a ser-se socrático, ou kantiano ou apeliano, mesmo havendo também uma história das ideias. É certo que eu concebo publicamente melhor o que é ser-se, por exemplo, aristotélico, porque sei que tipo de conceitos, de método de análise, de conhecimentos, alguém terá que invocar para se afirmar filosoficamente de tal ou tal corrente do pensamento. Sei que argumentos evocar para defender esta tese. Mas ser-se cristão, vamos lá, não é ser só aquele que segue as palavras de Cristo, ou o que se dedica à exegese da sua vida e obra, porque senão deixaria de haver crença num estado ou numa figura que fala em nome de um tempo e de um espaço que não é o tempo da história e o espaço da geografia humana, e passaria a estudar-se a teologia como mais um ramo da reflexão em filosofia. Não pode ser só isso, ainda que eu ache que isso já é muito, como acho muito que se saiba tudo sobra a obre de um Hegel ou de um Platão, entre outros. Mas, se eu conhecer uma obra, conhecer as palavras de Cristo, vamos lá, não significa por si que eu creia em Cristo. A crença na sua pessoa é uma possibilidade, não somente a crença naquele indivíduo que nasceu em Belém numa determinada época tendo andado a pregar por toda a Galileia, com um discurso ético e social novo, com conceitos extraordinários sobre a forma de vivermos a nossa vida uns com os outros, e tendo morrido nas circunstâncias que toda a cultura ocidental conhece profundamente, mas a crença na absoluta possibilidade ontológica de existir tudo aquilo que ele nos diz sobre a existência de (um) Deus e de um tempo e de uma vida para além desta vida neste mundo.

Que isto interesse a muitos, compreendo, que alguém alardeie a sua descrença, também, que publicamente e de todas as formas possíveis os que acreditam queiram mostrar aos outros a sua crença, igualmente, só não compreendo porque razão a crença não deverá ser do mais íntimo e pessoal que cada um saberá e deixará caber dentro de si. Porque se crermos na imposição de uma crença religiosa, como se de uma ordem social for, estaremos a dizer que a religião não passará de uma manifestação cultural e sociológica entre outras, e que crer, ou não crer, em Deus, dependerá exclusivamente do tipo de socialização que fizemos, do tipo de cultura em que estivemos inseridos aquando do nosso desenvolvimento. Mas então estaríamos a dar razão aos críticos da religião que a vêem como uma forma de dominar outrem em nome de uma ilusão, integrando-o numa espécie de lei, de regime comportamental, aquietando-o numa estrutura já conhecida e aceite pela comunidade. Ora a mim parece-me que a religião é revolucionária neste aspecto: ao reclamar-se herdeira de uma manifestação do divino ocorrido num tempo passado, tem que se dizer automaticamente permeável à presença de novas aparições desse divino no futuro, porque essa é sua razão de ser. Que depois se queira limitar, classificar, autorizar as formas como esse divino possa ocorrer, é que já me parece de uma arrogância ilimitada. E…no entanto, de alguma forma, as religiões presentes terão que se proteger das falsas manifestações, das pseudo aparições para se preservarem como guardiãs da palavra. Porém, nesta forma ingénua de pensar, há algo que não poderemos deixar de dizer: a crer nos que crêem, as aparições não se fazem por ordem ou vontade de ninguém. E isso é da ordem de que tipo de análise? Psicanalítica? Filosófica? Política? Ou pessoal, imensamente pessoal? É pessoal. Como é que eu sei? Não sei. Mas sei que afirmar o contrário é restringir a liberdade individual. A liberdade de acontecer um milagre, ou liberdade de escolher as palavras que melhor dizem a pessoa, incusive as palavras que digam o que viveu como um milagre.

Há um poço, onde os pequenitos afirmaram ter aparecido o anjo, um caminho para o penedo para onde dizem ter aparecido também um anjo, e há uma toca onde as crianças brincaram. Tudo muito estimado e bonito. E se fosse só isto que há a dizer.

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