segunda-feira, setembro 24, 2007

Os intelectuais e o liberalismo 2

Quais foram então os caminhos que Boudon abriu para a questão que o inquietou, a saber, o antagonismo expresso dos intelectuais às ideias do liberalismo?

É claro que Boudon distingue o liberalismo filosófico do político e estes do liberalismo económico, porém, resume que qualquer destas esferas pode ser unificada sob a égide da ideia liberal que defende “que as entidades colectivas, as classes sociais, as nações, o Estado e os Partidos, etc., são constituídos por indivíduos: rejeita o holismo.”, p. 15. Esta identificação ideológica é curiosa e é uma identidade filosófica, é uma ideia ocidental que tem uma história que não exclui as pessoas que se dizem de esquerda, nem, por si, identifica imediatamente as pessoas ditas de direita. Aliás, ainda há poucas semanas, já não recordo em que jornal, o socialista Mário Soares reforçava a sua ideia de inequívoca adesão aos ideais filosóficos do liberalismo, refutando tão só as ideias do liberalismo económico. Esta não é uma contradição ideológica, não num socialista de matriz ocidental. E o contrário também é verdade. Quantos liberais económicos não se sentiriam profundamente perturbados na construção da sua identidade quando se reclamasse para eles uma defesa de valores, igulamente denominados de liberais em termos filosóficos, de construção de uma ordem social mais assente na ideia de indivíduo e no reforço da ideia de uma “sociedade composta por indivíduos que procuram maximizar o seu bem-estar”, p.18, mais do que na ideia de coesão à volta das normas de grupo, na tradição familiar ou social, por exemplo.

Boudon parte também da definição filosófica de liberalismo. É sobre esta corrente do pensamento que ele investiga movimentos de aceitação ou negação, sendo que por ela se afirma “o indivíduo tem a aspiração de dispor de uma autonomia tão ampla quanto possível e quer ser respeitado na sua dignidade na mesma medida em que respeita o próximo”, p. 14. Dito isto, porque será então, segundo Boudon, que os intelectuais dos anos 50 aos nossos dias se têm mostrado tão adversos a seguirem as ideias liberais?
Porque:
a) Os princípios filosóficos do liberalismo terão sido frequentemente violados pelos preconizadores de uma sociedade liberal, defraudando assim as expectativas de toda uma gente que via nesses princípios uma boa teoria para ser aplicada numa prática social de regulação da ordem pública, onde a individualidade não implicava a defesa de acção do mais egoísta e do mais forte a promover desigualdades sociais sem legitimidade funcional.

b) Os modelos explicativos da sociedade segundo a teoria marxista continuam a ser utilizados pelos intelectuais, porque continuam a dar respostas úteis quando se procura explicar a sociedade. Daí o recurso a termos como os de “classe” ou “luta de classes” mesmo por parte de académicos que não advogam o marxismo como ideologia política. São termos que se sedimentaram melhor se os compararmos com as explicações das representações da sociedade em torno de ideias como as de estratificação social por "tipos ideais", “estatuto” e “teias de estatuto” (Weber e Pareto).

Na verdade, digo eu, a explicação de Gramsci permite uma análise curiosa da sociedade nas suas relações comunicacionais de poder. É um modelo que tem como pertinência teórica procurar uma resposta interessante, e culturalmente forte, para a questão de saber como as ideias se formam, se divulgam e se institucionalizam, por exemplo. Este modelo assenta na divisão da sociedade em duas classes que se opõem: a dos que têm poder de tornar homogénea a sua cultura e a sua ideologia (os detentores do capital financeiro e/ou capital de conhecimento e informação) por contraponto à classe dos trabalhadores. Hoje seria uma divisão entre os que detêm o poder de informar e os que procuram, ou estão sujeitos, ao processo de informação (reinvenção da clássica luta entre a classe dominante e a classe dominada).

Para Boudon, este fascínio teórico pela “luta de classes” explica-se por “o marxismo ter dado uma aparência erudita, e com ela legitimidade, a um modelo conspirativo eterno: a teoria da conspiração (conspiracy theory) De acordo com esta teoria , todos os males que se podem observar nas sociedades seriam devidos a uma conspiração dos poderosos, que dissimulariam os seus desígnios debaixo de nobres intenções”., p. 25.

Este argumento, sedutor, peca, quanto a mim, do mesmo defeito que ele apontou aos argumentos marxistas para a definição de sociedade. Boufon fica seduzido pela ideia de que é o gosto popular por uma teoria da conspiração que promoveu tão grande concordância à teoria marxista, quando a prática filosófica revela que a origem, ainda que dubitativa, não parte senão de uma observação das reais condições de vida de uma sociedade altamente estratificada como era a do século XIX, para mais tendo Marx lido e procurado assimilar o modelo filosófico de Hegel, que não é, nunca foi, um teórico da conspiração, senão um sistémico à procura de uma explicação para os movimentos de transformação (para a dialéctica) dos processos naturais, sociais, históricos ou ideológicos.

O que os neo-marxistas terão feito com as ideias de Marx, na década de sessenta e setenta, ou que eles tenham enveredado por defenderem ideias que, ao seguirem nessa linha de uma popularmente atraente explicação assente numa teoria da conspiração entre classes, tivesse levado a generalização dos diagnósticos marxistas de uma eterna luta de classes a acontecer em todos os domínios sociais, também me parece uma conclusão exagerada. Pese embora eu não saiba como contra argumentar contra a ideia decorrente da anterior e que leva Boudon a escrever que “A ideia de que a cultura é um veículo da reprodução das classes assumiu o estatuto de ideia feita. E continua a impregnar fortemente os meios do ensino e da cultura /Harouel, 1998 (1994)\”, p.27.

Mas se a cultura não é , de alguma forma, uma reprodução das classes, é o quê? E como se chega a essas conclusões? Com que métodos e assente em que teorias explicativas?

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