sábado, janeiro 19, 2008

"jogos de poder"

Mike Nicholas apresenta um filme “Jogos de poder” que quanto a mim perde em toda a linha. Salvaguardada a legítima vontade de contar a história do ponto de vista do que terá sido efectivamente o papel da intervenção americana (mais propriamente o papel de três ou quatro indivíduos americanos) no Afeganistão aquando da invasão soviética, tudo o resto me pareceu rígido no estereótipo das personagens: a mulher rica imbuída da crença maniqueísta de uma luta a travar entre as forças do bem e do mal, com o mal a ser representado pelas forças militares comunistas ali encarnadas pelo exército e poder soviético; o cínico, competente e libidinoso agente da CIA; o mariola lúcido, com uma agenda de contactos sociais e políticos verdadeiramente trabalhada e influente, senhor de humor inteligente a representar a personalidade de um congressista americano, o qual irá ser o motor a pôr em marcha o plano americano de apoio à resistência afegã.

Não me convenceram as representações. O volte face dramático da adesão emocional do congressista Charlie Wilson à causa dos afegãos após ter visitado um campo de refugiados no Paquistão, está filmado, e é representado, de forma superficial e vulgar. Com aquelas imagens e aqueles testemunhos não nos conseguem dar provas sobre o imperativo da mudança de posição do congressista, sobretudo quando sabemos que as imagens e testemunhos reais devem ter tido realmente um peso e uma dignidade existencial muito superior à que aqueles segundos do filme conseguiram transmitir. É verdade que a imagem da vastidão do campo de refugiados nos esmaga. É certo, mas foi uma imagem mal aproveitada para nos dar uma amostra da real magnitude do sofrimento e do desespero do povo afegão (e depois pôr aquela mãe a chorar por detrás do congressista quando este sobe à colina…para quê?! Tudo tão redundante, tão sem chispa e alma!).
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Por outro lado, há ainda o recurso frequente à câmara a pôr-nos no lugar de voyeurs à força, a grudar-nos nos decotes e nos rabos bamboleantes das competentes profissionais, e atraentes, assistentes do senador Wilson. Já sabíamos o que queriam dizer nas personagens os seus decotes e as suas saias curtas, já percebíamos, pela reacção das personagens masculinas que passavam pelo gabinete, qual seria o efeito, não era necessário a câmara sublinhar o obvio. Há mesmo uma cena em que a câmara segue o rabo da assessora de Wilson enquanto ela caminha por um corredor do congresso, sem que nada na história ou no que se possa acrescentar à caracterização da(s) personagens(s) o justifique. Só porque sim. É uma razão que a mim não me diz nada.
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Há ainda a dança do ventre da bailarina americana, uma espécie de oferta de uma menina de luxo em versão Las Vegas aos altos dignitários do Egipto. Então, mas os homens que vivem num país com centenas de bailarinas do ventre, algumas com requintada arte de sedução e superior execução sensual, vão embasbacar com a vulgaridade da execução artística ali apresentada ou com a vulgaridade da pessoa ali apresentada? A mim também não convenceu a facilidade da adesão à proposta política de se conluiarem os egípcios com os israelitas, para mais no conturbado contexto das suas relações nos anos 80, sobretudo com a explicação dessa facilidade se ter potenciado numa reunião enquanto os presentes desfrutavam do vislumbre do corpo de uma bailarina que os terá…digamos… amaciado nas suas resistências a trabalharem todos juntos. A mim não me convenceu, mas se calhar é bem mais do que verdade que há certas reuniões assim, sei lá.

Finalmente a cena da destruição dos helicópteros soviéticos… aquela música, chico aquela música…, e ainda aquela cena extravagante de pôr os resistentes a manusearem uma arma como se fossem mimos numa cena burlesca, sem saberem bem como tinham atingido e abatido um helicóptero soviético nos primeiros segundos, para logo depois já aparecerem atiradores experientes e treinados (raios, tantos milhões gastos pelos americanos e pelos sauditas para se treinar os muhajedin, e eles vão logo aparecer no filme como se fossem o Charlot na guerra?). Há ainda aquela conversa ficcionada entre os pilotos soviéticos a raiar a estupidez, do tipo, “Olha, enquanto vamos matar velhos, crianças, mulheres e homens indefesos daquela aldeia ali à frente, aproveitemos para discutir sobre o conceito de fidelidade sobre o qual eu e a minha namorada estamos em vias de facto de divergir, sim?”
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Finalmente, reprovo a leviandade daquela lista de tanques, helicópteros, aviões, camiões de transporte abatidos ou destruídos sem uma única referência aos soldados mortos em combate. Os soldados soviéticos eram o inimigo a bater, mas não eram objectos, eram pessoas. O filme redu-los à não existência, sub representa-os ao evocar com euforia a destruição dos seus veículos ou das suas armas. Num filme de propaganda é compreensível que se anule o inimigo a menos que nada, num filme maduro e com tempo de distanciamento era possível o reconhecimento à dignidade dos combatentes militares soviéticos, mesmo que se lhes retirasse a possibilidade de justificação ou possibilidade de explicarem a sua acção, que, de um ponto de vista meramente dos interesses do império soviético até tinham uma explicação. Era uma explicação abominável no método proposto, para uma acção ainda mais execrável, mas tinham-na.

Quando é que o filme, do meu ponto de vista, ganha interesse? Nos últimos cinco minutos. Porque só aí as personagens envolvidas saem da excitação e da compulsão em que estiveram envolvidas durante todo o filme, porque em defesa frenética de um projecto de resistência e de independência para o Afeganistão, ou de uma ideia de contenção dos interesses comunistas no mundo, o que não é bem a mesma coisa, ainda que acredite que o congressista as tenha misturado nas suas decisões, e compreendem finalmente que esse projecto militar não terá continuidade no que ao apoio de uma sociedade destruída diz respeito. Compreendem, impotentes, então, que o povo afegão rapidamente saindo de um domínio estrangeiro totalitário se verá submetido ao poder totalitário do exército dos Taliban que a mesma América e seus aliados potenciara.
Esta impotência de mudar as coisas em paz, de atribuir alguns milhões para construir as instituições que permitam a um povo tornar-se soberano dos seus destinos, depois de terem sido derramados muitos milhões para prosseguir uma guerra, é que eu gostaria de ver filmado. Mas como o foi, o pouco que o foi, esteve bem. Pena tudo o resto.

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