sexta-feira, fevereiro 22, 2008

A aparência de realidade

Pensamos no que sabemos pensar. Geralmente pensamos sobre aquilo que estamos a viver, mas se quisermos filosofar podemos pensar sobre o que não estamos a ver ou a viver mas que conseguimos representar da realidade hipotética na nossa mente. Mas aí é outra história.
Poderemos também ter a tentação de dizer que as coisas mais importantes não vêm através do pensamento, são de antes da linguagem... como se o pudéssemos alguma vez avaliar sem ser por palavras. O indizível tem uma não existência comunitária. Não é bem o silêncio, é outra coisa. O silêncio pode existir como forma de comunicação. O indizível não, pois pela sua natureza é uma experiência individual, inobservável, melhor dizendo, incomunicável.
Quando não estamos a viver ou a ver o acontecimento sobre o qual estamos a pensar, como sabemos que ele de facto ocorreu, ou que é tal como alguém nos diz que está a ser?

Tudo isto por causa da realidade de cada um. As cheias de Lisboa não afectaram da mesma maneira todos os bairros, nem todos os habitantes desses bairros. A minha realidade não foi a de centenas de outros lisboetas na madrugada de dezanove. Para saber o que sentir e o que pensar sobre as ocorrências dependi dos testemunhos e das descrições e posteriores interpretações de outros. Posso ter partilhado interesse pelo assunto, mas não partilhei experiência.

Na comunidade não podemos partilhar experiências de forma totalitária. Felizmente, não em democracia. Cada um, cada família, cada grupo de humanos partilha um número limitado de realidades e espera, se houver coesão social, que as outras formas de vida lhe interessem e que esse interesse seja fecundado por relatos ou juízos razoáveis, verídicos ou verdadeiros.
A política pode ser uma actividade onde se produzem análises verdadeiras, ou pelo menos, fidedignas sobre os temas/acções por ela demandados. As pessoas não podem é dizer que governam sem política, porque a política pressuporia uma discussão muitas vezes pensada como enfraquecedora da actividade governativa, sendo esta entendida como meio de decisão e de execução do decidido por excelência, mas virem depois a utilizar as técnicas políticas do discursos semelhante à verdade, sendo que não se exigem a si próprios/as dizer verdade sempre que querem passar as suas mensagens político-governativas.

Eu não sei o que é distinguir, numa democracia representativa, uma questão de governo de uma questão política. A não ser que aceitemos que o governo não passa de um conjunto de técnicos superiores a processarem acções num sistema essencialmente tecnoburocrático. Então neste caso deixamos de eleger deputados e de lhes permitir estabelecer um governo, passamos a ser governados por funcionários públicos administrativos.

As reformas deste governo são políticas, porque mesmo que as reformas não passem de uma submissão à ideia de existência e implementação de técnicas de regulação do défice, e de manipulação de números na educação, na saúde ou no emprego, isto por si já é uma interpretação política da arte de governar.

Quando a essa forma, legítima, de governar se acrescenta um discurso político que faz da falsidade a criação de uma realidade desejada, eu penso que aí entramos numa roda-viva do vale tudo para manter uma vontade pouco legitimada.

Pelo facto de ser recorrente que os políticos digam uma coisa quando estão a exercer determinadas funções, ou quando se estão a candidatar, e digam uma coisa contraditória ao encontrarem-se noutras funções, não faz de si que isso seja aceitável, que seja racional ou sequer que seja inevitável em democracia que tal assim seja. Não há uma inevitabilidade democrática para a mentira dos que nos governam.
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A solução passará por intervenções constantes e directas de grupos de cidadãos. Não é que o poder deva descer à rua, é a ideia de que o poder nunca deve sair da rua, porque só ela o pode legitimar com a sua escolha eleitoral ou com a sua manifestação cívica em movimentos de intervenção pública. Que isto se faça sem revoluções, sem desordem, e com qualidade de participação, é algo que não discuto. Mas que se faça de modo a que se obrigue a transformar os esgares dos nossos governantes, quando confrontados com opiniões distintas das suas, em real atenção aos cidadãos, ou obrigue os discursos manipuladores dos nossos governantes a sujeitarem-se ao escrutínio público, aos factos.

2 comentários:

rc disse...

O "sistema" ganha logo à partida porque a maioria das pessoas não exerce o seu sentido critico sobre as coisas. Não conseguem. Estão obrigadas a pensar, antes, num sem número de actividades de sobrevivência, de luta por vir à tona respirar.
Isto transforma as criticas em rudimentares frases de oposição, vazias, sem expressão e na maior das vezes, em complacência e no costume "deixa andar".

Isabel Salema Morgado disse...

Certo. Mas mesmo assim nessa "luta por vir à tona respirar", aparentemente tão afastada da consciência crítica, encontra-se um princípio do poder popular com que desde há séculos os governantes se têm que confrontar. E o apaziguamento dessa luta nem sempre se faz só em nome do circo e do pão, às vezes exige-se mais. E esta também é um forma de resistência, ainda que aparentemente pouco racional.

Aproveito para lhe desejar um bom trabalho no seu blog que tem um tema bem interessante.
isabel