Mas não, dizem-me, esse é o teu vício profissional. É o erro de tomares o singular pelo universal, a palavra individual pela acção geral. A maioria das pessoas quer lá saber dos critérios que orientam as suas escolhas, a maior parte limita-se a conseguir sobreviver, procurando ter com que comer, onde dormir e com quem procriar.
E será a procura desses fundamentos uma actividade estéril? O contrário dessa procura será mais verdadeira e respeitará mais as coisas como elas são? É como são as coisas como elas são? Quem está preparado para dizer como elas são? Os que procuram saber os critérios que as condiciona? Os que se limitam a viver respirando o tempo com as regras que as circunstâncias lhes dão?
Admito que a liberdade promova a confusão, que exija uma personalidade mais estruturada para não se despenhar em ansiedade, que a autonomia pode ser dolorosa ao empurrar para a solidão das posições e dos sentimentos e ao provocar a ruptura com o grupo. Não me admira que mulheres ilustradas queiram no mundo voltar à ideia de uma sociedade orientada por ordens superiores à dos seus desejos e vontades.
O meu filho diz algumas vezes quando instado a fazer escolhas e a responsabilizar-se por elas: "Não sei, escolhe tu." É ainda uma criança, mas já compreendeu como é mais fácil, ainda que possa ser aborrecido, escudar-se na decisão dos outros. Evita a inquietação interna.
As mais cínicas dirão: "É homem, há-se sempre ter a fama de tomar decisões e dá-las a tomar realmente para as mulheres."
Escolhe tu, decide tu, deixa-me na minha paz, ou na minha preguiça ou na minha existência física: expiro, inspiro, expiro, inspiro. E o que isto, mesmo involuntário, já dá de trabalho. Dá tudo um grande cansaço.
Mulheres ilustradas querem pois voltar a usar o lenço, como em épocas antigas. Veja-se o que acontece na Turquia. E com o lenço a cobrir a cabeça vêm as regras de relacionamento social que se juntam ao lenço. Não ter que escolher um homem com quem casar, não ter que escolher uma profissão para se sustentar e uma casa onde viver sozinha, e uma crença ou não crença religiosa a transmitir aos filhos, decidir a cor de um carro, ou se faz aquela viagem ou não, e escolher um partido ou uma ideologia contra a ordem tradicionalmente estabelecida e que possa romper com ela. É muita perturbação.
As minhas amigas que vivem sozinhas mais ou menos a contra gosto dizem-me: "Vá, já que tens opinião para tudo, diz-me lá porque há tantas pessoas solteiras, homens e mulheres, que não se encontram, ou porque não encontramos ninguém que valha a pena conhecer?
Eu respondo sempre, pragmática: porque os nossos pais e mais tarde nós mesmos descuramos esse facto simples que os pais deles conheciam muito bem, do povo às elites sociais e intelectuais, e que é o de terem que providenciar frequentemente encontros entre pessoas que queiram relacionar-se. Havia bailes sem fim por esse país fora, ou não havia? Não há outra grande explicação para que seja tão grande o número de pessoas que gostavam de conhecer outras e não o conseguem, senão o facto de não estarem a ser realizados o número suficiente de encontros sociais que de forma continua, generalisada e sem pressões, a não ser as de um qualquer outro encontro social, se frequente. Vão lá ainda às aldeias e vejam o número de relacionamentos. Ninguém os diz felizes. Di-los relacionados. Sim, está bem, mas é uma questão diferente. Adiante.
As pessoas ficaram entregues às suas próprias competências sociais que assentam na rede de amigos e familiares. Mas a competência das pessoas nessa área é muitas vezes nula. E as redes são cada vez mais alargadas mas também com laços mais frouxos entre si.
Comprendo por isso muito bem, posso rir-me, mas comprendo aquela avó que perguntou aos seus filhos, meus amigos, quando eles compraram uma casa de férias numa pequena aldeia quase sem jovens: "E com quem é que os meus netos se vão relacionar neste ermo, já pensaram?"
Eu que tive na minha adolescência uma "condessa de Ségur" como catequista, vi como ela procedia com os mais velhos do grupo, incentivava ao convívio frequente, organizando encontros, seminários e festas, sempre como se fossem casuais, mas com o olho vigilante de quem tece um tapete de várias cores. Ninguém se apercebia da intenção, ou se de facto se apercebiam não se mostravam desagradados, e no entanto ela sentia ser sua essa obrigação social.
Digo aos meus alunos:"Reparem na segurança que dá serem os outros a escolher por nós ... até o nosso par." Reacção generalizada de repúdio. Sorrio. É bom senti-los com a ideia interiorizada de responsabilidade pessoal, sem querem paternalismos. É bom. Mas vai doer. E será mais difícil. Digam-lhes isso e preparem-nos para isso. Não os enganem. E seria bom que depois não andássemos à procura de razões para a solidão, que passam, em primeiro lugar, pela solidão em que se está e da qual dificilmente se conseguirá sair sozinho, e só depois virão as outras razões pessoais de cada um. Mas isto também deriva de não sabermos que valores promover, ou de como conjugar o respeito absoluto pela liberdade individual e os interesses do grupo.
As meninas turcas querem a segurança da tribo. Sacrificam a sua individualidade à coesão social por uma ideia que é a de nação turca não laica. Eu arrepio-me com essa escolha. Mas sei que escolher o contrário disso também não é motivo de felicidade individual por si só. O que haverá a pesar é o resultado do maior bem público que se pode obter com cada um dos modelos e tendo em conta a posição livre de todos os interessados. A liberdade, sempre a liberdade como critério. Até para se ser infeliz é doce a liberdade. Para quem é.
Inspiro, expiro. Ideia para a sociedade/sentir do indivíduo.
Mónades, milhares de mónades. Gosto de conceito pitagórico e mais tarde leibniziano.
O problema é que nós não somos mónades: porque somos tudo menos matéria simples.
"Não, não, não. Tu é que dizes que não são matérias simples." Vício profissional.
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