terça-feira, março 11, 2008

Espiral de cinismo 1

Penso que já aqui escrevi sobre o livro de K. Hall Jamieson e J. Capella intitulado Spiral of Cynism, The Press and the Public Good , em português podia ser traduzido por algo como Espiral do Cinismo, a Imprensa e o interesse público. A tese principal dos autores é que o cinismo (que está para além da classificação de uma reacção realista ou céptica aos acontecimentos, discursos ou pessoas) tornou-se epidémico como atitude de análise da política, fazendo com que toda e qualquer acção seja entendida à luz de um interesse, de uma qualquer estratégia, que não em nome do bem comum.

Ao mesmo tempo que se perguntam sobre se será justificada a falta de confiança do público nas suas instituições, os autores procuram saber qual a origem desta reacção cínica e quais as suas consequências sociais. Eles concluem que a generalização de uma perspectiva do enquadramento jornalístico das notícias segundo o princípio da estratégia, do estudo dos efeitos sociais dos enquadramentos jornalísticos junto do público a partir de análises que se baseiam sobretudo em destacarem os elementos da sua própria competição quotidiana, na promoção do conflito, o artifício dos desempenhos, as motivações ocultas e o interesse pessoal, é a causa principal daquilo que produzirá no público a sua reacção cínica relativamente aos governantes em particular e à política em geral.
Assim, notícias estratégicas motivariam respostas cínicas. No sentido em que o "enquadramento jornalistico é uma forma de induzir a um determinado tipo de compreensão acerca dos acontecimentos noticiados." p. 85.
Então, o acontecimento que é coberto é tão importante como a forma como é feita a cobertura, logo, provaram eles, o cinismo na abordagem às notícias provocará cinismo na recepção das notícias, entrando-se num dinâmica auto-destrutiva. Assim uma espécie daquilo que o Ministério da Educação fez com o seu discurso sobre a educação. Adiante.
..
Toda a questão da espiral de cinismo começa no nível em que os políticos e os jornalistas dizem estar a corresponder ao cinismo um dos outros, que estão apenas a reagir ao cinismo demonstrado pelo outro no processo de interlocução, o segundo degrau de voragem em cornucópia é o da confirmação do próprio cinismo do público testemunhado em sondagens, mas por réplica do que viram ser a retórica dos políticos e as tácticas dos jornalistas, finalmente o terceiro degrau de vertigem está na crença generalizada dos media de que estão a dar ao público aquilo que ele quer e deseja, minimizando a vontade do público em ter acesso a uma informação com conteúdo.
--
Volto a falar disto aqui por causa da entrevista que a jornalista Maria Flor Pedroso conduziu ontem junto de Rui Marques, o representante do Movimento Esperança Portugal. Só tive oportunidade de ouvir os últimos quinze minutos da entrevista passada na Antena 1 ontem perto da meia-noite, mas o que ouvi foram quinze minutos de uma jornalista a procurar impor a sua visão estratégica sobre o que é a vida política e como pensa que são realmente os representantes políticos, contra uma atitude da mais razoável forma de pensar a política numa sociedade democrática como foi a apresentada por Rui Marques. Por um lado o discurso estratégico a querer compreender e a enquadrar este fenómeno do ponto de vista das suas aspirações instrumentais para conquista do poder, do outro lado um discurso de um agente da ética comunicacional como Habermas, entre outros, desenvolveu como forma possível de responder ao domínio da estratégia da maioria.
Nunca ouvi, aliás em contraste pela atitude mais cínica da jornalista, no sentido académico já delineado linhas acima, ninguém em Portugal em política recente a evocar novamente os valores da democracia participativa e deliberativa, como Rui Marques o fez, que nunca se deixou enredar nas crenças de uma visão instrumental da política. Que me recorde só Manuel Alegre conseguiu com o seu discurso de apresentação da sua candidatura uma elevação dos termos e das ideias ao ponto de entusiasmar verdadeiramente todos aqueles que acreditam na política como uma acção de regulação do poder público segundo a ideia de bem comum por excelência.
--
Claro que é mais fácil ter discursos destes, inovadores, criativos, contra a corrente dos benefícios pessoais, quando se vem de fora do sistema, mas sendo mais fácil não quer dizer que seja fácil de todo. Senão haveria mais cuidado com os discursos dos políticos. Eu gostei muito da atitude pedagógica do discurso democrático de Rui Marques, numa altura que em Portugal o poder político anda desnorteado relativamente aos seus valores fundamentais que deve adoptar no trato da coisa comum. Um bom agente na defesa de uma comunicação política não estratégica.
--
Também ontem tive oportunidade de ouvir quase todo o debate entre realistas (como defende o Prof. Maltez) e republicanos. Como republicana convicta gostei de assistir a um bom debate académico sobre a questão dos regimes políticos e dos seus valores. É um bálsamo ouvir análises distanciadas da coisa presente. Como académica pensei que a proposta monárquica, para além do seu interesse histórico e social, estava viciada à partida, julgando encontrar na figura de um rei a solução para os males da democracia republicana portuguesa. É panaceia que nenhum estudo de regimes comparativos me convenceu pelo excesso simplista da ideia: muda-se o chefe de Estado, tornamo-lo vitalício, e este regime podre florirá finalmente?! Uma figura providencial... era só o que nos faltava. Não é que na República também não haja quem se pense insubstituível, felizmente que quem o elege pode ensinar-lhe o contrário. É esta salvaguarda que eu prezo na república, esta reserva popular que não precisa de se manifestar sdobre a forma de revolução, mas que opera transformações profundas. Ou pode operar. Entende-se?
Por outro lado, tive oportunidade de voltar a ouvir um dos mais excepcionais professores deste Portugal, o Prof. Mendo Castro Henriques. Nunca encontrei ninguém com que eu discordasse mais sobre quase tudo e quem ao mesmo tempo eu mais prezasse academicamente. A minha admiração pelo intelecto daquele professor não tem paralelo, e eu tive a sorte de conhecer excelentes professores. É um magnífico pensador. Eram aulas dadas sem réstia de cinismo mental. Que saudades.

Sem comentários: