sexta-feira, maio 09, 2008

Churchill: uma leitura 5

Ars retórica - parte 2

Só conheço um discurso na íntegra de Churchill. Aquele que Leopoldino Serrão seleccionou para o livro Grandes Discursos Políticos, vol. 1, publicados pela editora Ausência. De resto falo da sua competência discursiva por ouvir dizer, mais do que por meu saber. Por ouvir dizer quem o admira e o comenta, e por ler o que os seus pares pensavam então das suas intervenções e sobre as reacções registadas da população aos seus discursos.

Um discurso pode transcender o momento histórico em que é escrito e para o que é escrito, sobretudo o poético, muitas vezes também o filosófico, mas não é uma tarefa acessível a todos os autores, nem a todos os géneros literários. Os textos têm uma data, falam uma linguagem que tem lastro cultural e social, falam entrincheirados na formação do seu autor, nos seus conhecimentos, no seu registo de memória, na sua capacidade de intuir ou de imaginar, de representar a sua experiência no mundo.
O discurso político mais do que qualquer outro perece nas mãos do tempo, sobretudo se dito por quem não se deixa dominar senão por modas discursivas, por modas ideológicas, e sem traço de reflexão crítica, de saber sobre a história ou capacidade de analisar as consequências das acções no futuro.

Textos poéticos, textos analíticos ou conceptuais, textos de aforismos, mais facilmente podem interceptar os tempos e convocar os leitores do futuro.

O discurso de Churchill que eu conheço intitula-se A frente de Guerra contra os “Filhos do Sol Nascente” e foi pronunciado perante os membros do Congresso dos Estados Unidos em 1943. Não é um texto que convoque o futuro. Não no meu entendimento. É um bom texto histórico e biográfico. Não é um discurso imortal.

É um discurso de reconhecimento e de regozijo pela associação entre as duas nações em guerra, mas também claramente um texto em que se dá a entender firmemente quais são as ideias estratégicas a que a Grã-Bretanha quereria dar continuidade no mundo. Reparei como Churchill teve que reforçar várias vezes a ideia de que o esforço de guerra estava a ser suportado igualmente com grandes custos para a Grã-Bretanha e seus aliados, tanto quanto pelos Estados Unidos, listando o número de mortos e feridos em combate, tanto quanto os meios de luta e os meios logísticos envolvidos. Não devia ser essa a percepção da opinião pública americana e Churchill veio relembrar que o esforço de guerra do império inglês começara antes e continuava inexorável a par dos Estados Unidos. Este com a maioria das suas forças concentradas então, em 1943, na frente do Pacífico, aquela com responsabilidades de conduzir a guerra no Atlântico e no Mediterrâneo.

Numa linguagem aqui e ali alavancada em frases emotivas a apelarem ao sentimento de heroicidade, a “voz do sangue”, que permitiam dizer-se e sentir-se com convicção que “Travaremos esta guerra com gosto enquanto os nossos corpos respirarem, enquanto correr sangue nas nossas veias”, p. 174.
Discurso de exortação, aliás, que qualquer líder em qualquer batalha que trave convictamente contra um inimigo, igualmente convicto das razões do seu uso da força, utiliza. O que era próprio deste discurso? A compreensão do seu lugar (e a do seu país) na história presente. A sua consciência de que tinha necessidade da cooperação americana, que tinha que manter a via de negociação sempre aberta mas de forma a manter-se como decisor e não como mero executor das directivas (estratégias) americanas, sendo que ao mesmo tempo tinha que ter um discurso de reconhecimento pelo esforço de guerra americano.

Com uma mão a agradecer e com a outra a instigar a América a seguir um rumo no qual os interesses nacionais da Grã-Bretanha não ficassem diluídos na grandeza do envolvimento americano na guerra, sendo que isso teria que ser feito com interlocutores convencidos da fidelidade aos princípios comuns que os reunira na luta e convencidos da necessidade de combinarem execuções, fazendo-se apelo à urgência de realização de reuniões constantes entre os Estados Maiores e os chefes de executivos das duas nações.
Sabemos que Churchill iria ter razões, ao longo da guerra, para evocar quebras neste compromisso. A grande nação americana seguia muitas vezes, sem disso dar conhecimento, a sua própria estratégia, ainda que outras tantas vezes tivesse acorrido às solicitações britânicas e ajudado a minorar as baixas ou a coadjuvar as suas forças procurando a vitória conjunta em batalhas decisivas no Norte de África.
Reparo também como Churchill cuida de elucidar a importância do papel das forças russas em terra no desenrolar da guerra. E noto igualmente como os princípios que levavam uns e outros a combater eram tão distintos entre si, mas permitia-lhes uma união contra o inimigo comum: Hitler. Engraçado que na Europa o inimigo tenha um nome, e na Ásia seja todo um país identificado como inimigo. A proximidade entre os povos europeus a ditar a reserva emocional de tomar o todo alemão pela sua parte, algo que a distância, e provavelmente o respeito pelo sentimento dos americanos em face do que sentiram como grave agressão japonesa aos interesses americanos, deve ter elidido no tratamento do caso japonês.

O “dever para com o futuro do Mundo e o destino do Homem”. Mas quem defina esse futuro? Nas Nações Unidas, organização recém-criada? Qual seria a voz a delinear esse futuro? A América, a Grã-Bretanha, a Rússia, a China? Quais eram os princípios universais e sob que fundamento se poderia erigir como normativos para a humanidade? Churchill falava a partir da sua história, da sua tradição, e como convencer os outros povos a viverem sob ditaduras do valor desses valores?

O tom, a que infelizmente o registo escrito não nos deixa aceder, terá todo o seu efeito de persuasor. Porque pode ser dita a seguinte frase de múltiplas formas (da forma mais convencional, mais protocolar, mais conformista, mais enganosa, mais aduladora ou mais convincente): “penso que não teríeis podido escolher outro homem melhor do que o general Eisenhower, para manter o bom entendimento entre as suas três grandes forças heterogéneas (…)” p.185. Qual seria o sentimento a pontuar esta frase?

Aceito a originalidade e a grandiloquência do sentimento que instruiu algumas das frases que são incitadoras à emoção. Este sim um elemento comunicacional transversal aos discursos políticos de apelo e de crença nos efeitos do discurso sobre o estado de ânimo, se ditos por quem seja de autoridade reconhecida.
E como é que ela se reconhece? Em política, a forma mais imediata de reconhecimento é dado pelo voto. Mas nós sabemos que aquilo que se pensa e aqueles que pensam, não se põem constantemente à prova por sufrágio, e muitos nem sequer à prova do contraditório entre pares. Então quem reconhece o que acha que está acima da necessidade de justificar o seu reconhecimento?

Sem comentários: