Ontem preparava uma aula e reflectia sobre o denominado paradoxo de Epicuro e sobre a natureza do mal:"Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou pode mas não quer. Se quer mas não pode, é impotente. Se pode, mas não quer, é malévolo. Mas se quer e pode, de onde vem então o mal?"
A propósito do mal natural sob a forma de catástrofes que afectam milhares de pessoas no mundo, parece-nos que só nos resta reflectir sob a ordem humana da capacidade de prever, resolver ou solucionar os efeitos destes fenómenos, minorando o sofrimento das povos. Como se as reflexões sobre a natureza do mal estivessem datadas, como se as inquietações metafísicas se apaziguassem no mundo com uma linguagem jurídica ou criminal. Mesmo na questão da discussão da natureza do mal moral avança-se logo com uma panaceia penal.
Não quero ser confusa. É claro que os sistemas jurídicos internacionais e nacionais têm que dar uma resposta social e prática à questão do mal, mas essa forma de pensá-lo, se exclusiva, torna-o um acontecimento pensado, de certa forma até esperado, integrado numa determinada ordem.
É como aceitar sem sobressalto (algo que eu não consigo fazer) que quando estamos a sair de casa para iniciar uma viagem longa haja alguém que na rádio nos fale de estatística e de previsão de um número determinado de acidentes, com mortos e feridos, por exemplo. Então já está naturalmente previsto e contabilizada a morte ou o ferimento na estrada de um agente que agora acorda quentinho, que inspira com gosto o cheiro do pão e do café, que se ri, se entristece, se zanga ou se regozija, que prepara a mala e se apressa para ir morrer no asfalto?
Por outro lado, as previsões sobre o que pode acontecer em situações de catástrofe iminente também se ligam com as obrigações dos nossos governantes saberem assegurar a nossa protecção. Liga-se à política. Mas eu recordo como houve um tempo em que os filósofos europeus reflectiam sobre a natureza do mal a partir, por exemplo, do terramoto de Lisboa em 1755. Como se forçassem o pensamento a debruçar-se sobre o abismo do que é dificilmente consciencializado, como se obrigassem a acção humana a olhar de frente o horror, numa preparação inevitável, embora perversa, para a luta contra forças do mal que se iriam juntar em concertos de horror durante o século XX.
Teóricos há que responderam ao dilema de Epicuro advogando que só assim se compreende a faculdade do livre-arbítrio, sendo o mal uma consequência, apesar de tudo menor, dessa liberdade de escolha humana, de autonomia e responsabilidade. Se não houvesse que escolher o que fazer em cada segundo para quê a liberdade da pessoa? Eu não sei se é preciso que morram milhares de pessoas, se é preciso escravizar uma pessoa, para que eu possa saber o que fazer em cada momento, que atitudes devo escolher. As experiências pensadas não seriam suficientes para ajudarem a compreender, é preciso sermos confrontados com a morte e o sofrimento de outrem para sabermos quem somos nós de verdade?
As explicações fundamentalistas também são uma infelicidade. Dizer-se que as catástrofes ou o horror de uma pessoa são uma espécie de castigo divino, é algo que quem tem uma cultura cristã impregnada na ideia de existência, ou de uma ideia de uma ideia de existência, de um Deus benévolo, não lembra de todo. Mas no mundo "existem" deuses malévolos. Existem religiões que não consideram como fundamental ter um deus com traços amorosos, preferindo-lhe o traço de agente punitivo.
Mas isto remeterá para a idiossincrasia antropológica, quanto muito psicológica e social dos povos, se pensarmos que a teoria das representações sociais de Moscovici tem legitimidade como explicação das origens das crenças. Mas não explica a existência do mal.
E explicar as causas dos fenómenos naturais ou dos psicológicos que estão na origem do mal, explicam o mal?
Pelo menos que as ajudas cheguem a tempo.
2 comentários:
O Terramoto de Lisboa não terá sido um século antes?
Muito obrigada pelo reparo. Isto já é mais que distracção, é mesmo um defeito cognitivo meu. Obrigada.
isabel
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