"(...) Foi em 1988 que a Assembleia Geral da ONU consagrou o dever de "assistência humanitária às vítimas de catástrofes naturais e de situações de urgência da mesma ordem".
Nesse princípio se filiaram, com assentimento do Conselho de Segurança, a intervenção de 1991 a favor dos curdos destroçados pela violência do Governo iraquiano, e também a pouco feliz acção na Somália em 1993, com o nome de Restore Hope. Rapidamente a intervenção foi alargada no sentido de acudir aos Estados falidos (collapsed state), iniciando uma deriva que viria a dispensar a intervenção da ONU, designadamente com a intervenção da NATO no Kosovo em 1999.
A responsabilidade de proteger encontrou doutrinação jurídica de validação para esses casos, desenvolvendo a vertente - coalitions of the whilling - para suprir designadamente a decisão ou incapacidade de um Estado proteger os seus cidadãos contra as catástrofes ou políticas ou naturais.
Que o alargamento do conceito, aliado ao unilateralismo das soberanias mais poderosas, fez tornar frequentemente equívoca a distinção entre intervenção ética e ingerência ilícita, tornou-se evidente, uma evidência que fortaleceu as argumentações contra o unilateralismo americano no Iraque, ou contra os limitados êxitos da intervenção da NATO no Afeganistão.
À medida que as debilidades das intervenções baseadas apenas no poder vão inspirando nos EUA discretas manifestações de políticas de retirada, a secretária de Estado Condoleeza Rice começa a ver recordado o conceito, que em 2006 anunciou na Universidade de Georgetown, de uma nova doutrina chamada diplomacia transformacional. Esta política, não necessariamente apoiada em intervenção militar, procurando até dispensá-la, consistiria em acções multilaterais destinadas ou a construir a democracia ou a mantê-la em casos de risco, para que o bom governo seja uma garantia da boa participação na ordem internacional.
(...)
Talvez uma das debilidades da doutrina esteja na versão missionária do discurso presidencial americano, na como que sacralização da nação indispensável, referências ideológicas que apoiam a lembrança de doutrinas coloniais, e por vezes inspiram decisões, como a reinvenção do protectorado para o Kosovo, que dificilmente escapam a essa caracterização.
A circunstância de a população iraquiana não ter explodido na esperada gratidão por ter sido libertada de um regime tirânico traduz-se numa indicação de pesados custos no sentido de que, antes de tocar na vida interior do Estado, é conveniente ter informação das convicções patrióticas e identitárias.
(...)
Uma coisa é a ingerência legitimada pela comunidade internacional, oposta à indiferença para com as calamidades que atingem os outros povos e Estados: outra bem diferente são as derivas de face missionária e interesse próprio.
Porque estas derivas esquecem que a primeira exigência aos Estados é a do respeito pelo ordenamento internacional: intervir porque a ordem interna não corresponda aos princípios exige respeito pela definição ética e jurídica do direito-dever de intervenção, que não consente nenhuma deriva unilateralista. (...)" Adriano Moreira in DN
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Como o Prof. argumenta, "uma coisa é a ingerência legitimada pela comunidade internacional (...) outra bem diferente são as derivas de face missionária e interesse próprio", daí que eu não compreenda porque Alberto Gonçalves no jornal DN de Domingo atacou a posição de Ana Gomes que defende uma intervenção na Birmânia segundo o estatuto "obrigação de proteger", como resposta às circunstâncias de deficiente prestação de ajuda do estado de Myanmar ao seu povo. É querer comparar o que não tem comparação, nem consegue ter por mais voltas que queiramos dar ao assunto. O que se passa na antiga Birmânia não é o que se passava no Iraque, ainda que com toda a mediocridade do sistema plítico lá montado.
As necessidades de intervenção que se reclamaram para o Iraque e que se reclamam agora para Myanmar não são de todo da mesma natureza. Ana Gomes tem toda a razão.
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