quarta-feira, junho 04, 2008

Aprendi que sim, porque não?


Há duas noites, entretida que estava a iniciar uma viagem para casa e a fazer uma inversão de marcha numa rua da cidade, ouço na rádio proferir o nome Heliodoro Salgado. A antena que estava a ouvir nessa hora era ocasionalmente a Antena 2.
Mudo de frequência de rádio mais vezes do que mudo de camisa.
Mais do que na televisão, a cuja imagem me rendo muitas vezes de forma passiva dando-lhe a subliminar ordem: entretém-me, na rádio procuro activamente o que me convém em cada minuto dos meus percursos motorizados.
Às vezes, sobretudo ao fim-de-semana em que se desfiam relatos atrás de relatos, ou de comentários desportivos sobre comentários desportivos, não encontro quase nada que me diga nada, nos outros dias tenho tido sorte. O género musical certo para o humor do momento, as palavras que me interessam ou que me intrigam ao ponto de ensurdecer para a realidade exterior, enfim. Só pode ser sorte que o acaso dos momentos e da sintonização baseada na impressão circunstancial me dê felizes ocorrências. Por exemplo: ouvir falar de Heliodoro Salgado no preciso momento em que inicio uma viagem nessa rua. É claro que a repetição do nome, pelo autor do programa no decorrer do mesmo, aumenta a probabilidade de mais pessoas estarem a passarem, em momentos diferentes, e pensarem: Olha, cá estou eu, e cá está a rua com uma placa a homenagear um dito cujo, da existência do qual se está agora mesmo a falar aqui na rádio.
Sobretudo se alguma dessas pessoas nessa rua tivesse morado, com uma casita sobre o miradouro a espreitar a cidade.
Não há nada de metafísico, mas há um momento de simpatia.

E ontem, ainda com o sortilégio da noite anterior nas ondas do ar, ouvi falar de um livro que me pareceu ser interessante o Uma janela para o infinito, mas o que me fez continuar a ouvir, já depois de ter chegado ao lugar por debaixo da minha janela, foi a entrevista dada pelo autor, um matemático e escritor francês. A certa altura o entrevistador pergunta-lhe sobre a importância da matemática, sobre o lugar da matemática na vida das pessoas, e eu, que esperava ouvir os clichés sobre a importância da matemática para a formação da pessoa profissionalizada contemporânea, e bla bla, ouço, ao invés, alguém dizer que não é importante não se gostar de matemática, que é possível dela gostar tanto quanto não se gostar, e que daí não advém particularmente nenhum mal, pois não é essencial para a vida que se goste de matemática, pese embora a vida dele de amante da matemática lhe seja muito querida. Tudo isto dito num tom sereno, nem panfletário, nem cínico ou sequer irónico. Um curador de paixões.
Não foi tanto a liberalidade valorativa do autor para com o objecto da sua paixão e pesquisa, foi antes a minha percepção de algo que me causa mal-estar acerca de uma certa postura na discussão de ideias em Portugal que nos leva (a mim seguramente me leva) a cruzar armas constantemente, de pôr sal em feridas, por uma dama: a nossa. Agora, eu que muitas vezes devo parecer uma cruzada em terra de infiéis a lutar contra um qualquer dragão quando dou aulas, envergonhei-me.
Gostar de Cantor não é expô-lo em praça pública para que todos lhe rendam a mesmíssima e obrigatória homenagem, como a que lhe é prestada por quem dele gosta. É antes dá-lo a conhecer, dizer como é, e depois não ser arrivista, deixar gostar dele quem gosta com amesma naturalidade com que se deixa não gostar. Assim, simplesmente em liberdade.
Falei de Cantor por causa do autor Denis Guedj. Podia dar qualquer outro exemplo. Certo, Isabel?

Sem comentários: