quinta-feira, outubro 02, 2008

Acerca da biografia de Arendt...talvez 1

Uma vez convivi com uma pessoa especialista em Relações Públicas. Ela dizia-me que não havia ninguém a quem não conseguisse sacar informações, e eu acreditava. Contava-me histórias de muita gente, sobretudo das pessoas do nosso meio de estudo, a academia. Eu passava demasiado tempo a ouvi-la, dividida entre o sentimento de náusea e de fascínio boçal. Mas ficava, e nem o "Ai que nojo que isto me mete!", me afastava liminarmente da sua presença. Eu gostava , apesar dos trejeitos como esboço de resistência.
Um dia, alguém que não gostava de mim resolveu subitamente explicar-me porque não gostava de mim, pois achou intrigante que aquilo que eu parecia ser não coincidir com o que ela julgava de certeza que eu era. E falou de mim como se falasse de uma pessoa que eu nunca tinha visto ou conhecido. Aquela pessoa que dizia ser eu, não o era de facto. Não por minha recusa psicológica na assunção das falhas de carácter apontadas, não, ora!, mas porque realmente aquela descrição de factos acerca da minha pessoa não correspondia à minha pessoa.
Vejamos, não era só uma questão de interpretação dos actos, porque aí ficar-se-ia no terreno pantanoso das múltiplas e possíveis versões dos acontecimentos, e isto é algo normal numa sociedade, são formas de convívio, nem ainda por reacção negativa à minha personalidade, porque isso, enfim, é uma questão decorrente da socialização. Mas não era isso, na realidade eram-me claramente imputadas acções que eu nunca realizara em tempo algum em estado de vigília.
Eu, ali, era outra pessoa, não simbolicamente, mas com um outro papel social de facto.
Indicaram-me a fonte e eu percebi que a mesma pessoa que dizia recolher a informação sobre outrem, afinal a estava a criar para a dar a um público ávido onde quer que ele houvesse, a mim, por exemplo, quando sobre os outros, e a alguns outros sobre mim.
Compreendi o poder que há em construir factos e personalidades no grupo social. E contra isso só há uma panaceia: alguém se dar ao trabalho de nos querer conhecer de facto, ainda que esse conhecimento não seja uma senha de entrada no círculo da amizade ou admiração mútua e eterna, mas de conhecimento o mais próximo da realidade possível, tão só, tanto, de resto...
..
Comecei as primeiras páginas da biografia de Arendt fascinada com a história do século XX que aquela mulher conseguiu incorporar no seu circulo existencial, e depois comecei a sentir aquela náusea já minha familiar: o livro desemboca na vontade de contar a vidinha da autora, aquela parte em que se fica no limiar do mexerico e da maledicência. E isso aí é responsabilidade de Laure Adler. Não estou a insinuar que ela tivesse criado os factos, mas que os iluminou excessivamente para a história de uma pensadora. Hei-de tentar explicar melhor isto.

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