sexta-feira, dezembro 26, 2008

A humanidade 1

Por muito que queira saber não sei de facto sobre os factos sociais que me procederam e formaram crenças e civilizações. Por muito que queira há sempre resistência em mim em esclarecer o que quero deixar obscuro, o que quero realmente que continue em estado de mistério. Por muito que o Natal seja mais que uma pilha de livros e de outros artefactos para alegria intensa de usufruto imediato, ou que se cristalize no entusiasmo da minha criança, é difícil saber o que mais pode ser o Natal quando vivemos numa cidade sem um céu próximo para o qual olhar, em apartamentos sobreaquecidos, ou então frios de necessidade, e sem vento na cara debaixo de um som dos ramos de uma árvore ou pelo calor da subida por um monte acima.
Os meus antepassados pastores e camponeses não saberiam mais de espiritualidade do que eu, penso eu, por estarem mais próximos dos elementos. Não tenho essas ilusões. Teriam sim um maior controlo social sobre os seus comportamentos, que lhes compunha o comportamento, e lhes formava o carácter, as regras permaneceriam mais duráveis, o que os entrincheirava na vida, mas também lhes dava resposta e retirava ansiedade, penso eu, outra vez.
Tinham muito menos comida, tinham quase tudo muito menos, muito menos dinheiro para comprar coisas, muito menos informação para armazenar, pese embora os que de entre eles foram comerciantes terem obrigatoriamente que ter trocado mais do que palavras, uma meia dúzia de ideias, certamente; mas já teriam mais certeza na irregularidade da fortuna e crença na necessidade de trabalhar muito, e sempre, e mais descendentes a quem deitar ao destino. Estarei a ser condescendente? Eu que não sei fazer mais nada a não ser perguntas.
Mas saberiam mais do que há para saber e que eu também não sei? Duvido. Não duvido das capacidades deles, duvido que o tempo deles fosse dado para o saber, ou para terem interesse nesse interesse. Acredito mais no seus conhecimentos sobre animais, ou colheitas e árvores, ou rituais de iniciação social à família, de pertença ao grupo, de entrega pacífica ao único credo conhecido e admitido da sua comunidade. Homens e mulheres de poucas perguntas, mais de acção: saber amassar um pão, podar uma vinha, cerzir uma roupa, cortar o cepo para lenha, criar a cabra ou o vitelo, guiar o carro de bois, albardar um burro e dançar na eira nas noites quentes de verão.

Quantas perguntas ditas essenciais terão feito na vida? Acaso alguma retórica? O acto de questionar seria usado de outra forma a não ser para demandar pela vida comum? Onde deixaste a enxada? Viste a peneira? Já deste água aos animais? Diz-me cá então, e a moça do Pocinho por quem o rapaz se embeiçou? Brinco eu a Júlio Dinis. Como se soubesse.

No dia antes do Natal peguei, à procura de informações sobre o liberalismo português (porque precisava de contextualizar uma ideia que tinha sobre "opinião pública"), num livro de História orientado por Mattoso. No vol. X leio sobre as modalidades de assistência a crianças, velhos e pobres do regime liberal, e fixo: "no ano económico de 1862-1863 foram expostas em Portugal 16294 crianças e no ano imediato 15536, o que corresponde a 1 exposto por 109 habitantes e a 1 exposição por cada 8 nascimentos! A mortalidade é elevadíssima, cerca de 4200 óbitos anuais."p.225.


Ora onde está a história destes expostos? Escreveu-se sobre homens pobres que nunca foram meninos com Alves Redol, que li eu no liceu (sobre as mulheres que nunca foram meninas também não conheço história em Portugal), certo, não foram meninos mas tinham ainda a quem chamar de mãe ou de pai, enfim, para pouca coisa mais serviriam para além de darem a saber o lugar dos filhos numa hierarquia de seres, mas, e os expostos de Portugal? Não faz o autor história comparativa, daí não saber como interpretar esta realidade por contraste com outros países, mas como iludir esta questão civilizacional que há não tanto tempo assim na história afectava o centro do então nosso imenso império?

Que espiritualidade cabe dentro do tempo comum, que é este da nossa história social?

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