segunda-feira, abril 13, 2009

1. Esta Páscoa passei-a na Rússia

mais propriamente na Rússia descrita por Owen Matthews. A ler o seu livro, portanto.

Eu diria, sem desprimor para o autor, que este livro é uma nota de rodapé da biografia de Estaline de Montifiore. Uma nota de rodapé literal. A existência de cada indivíduo em sistemas totalitários não passa de uma anotação no pé da página do seu governo, quando não um ponto final de uma linha dedicada aos subjugados. Para não falar nas rasuras. E o livro Filhos de Estaline conta-nos as histórias da vida de vários indivíduos na terra da Rússia de Estaline, mas também na de Yeltsin, Gorbatchev ou Putin. E se o terror imposto aos indivíduos não é obviamente comparável entre estes diferentes autores, nem por isso estes últimos governantes propiciam a entrada dos cidadãos russos numa esfera de razoabilidade social.
Matthews quis deixar uma referência existencial para iluminar aquele tempo de obscuridade imposto à sociedade civil russa no tempo de Estaline? Não propriamente, porque o seu pai já tinha escrito em dois volumes toda a trama político/social que o envolvera, à sua noiva Luydmila, e às suas respectivas famílias e amigos. O testemunho já passara. Os indivíduos já se tinham destacado da mancha que os confundia com todos os outros, logo com nenhuns. Aliás, este é um malfadado prodígio dos governos autoritários: o de despersonalizar a política e as suas consequências.
Então o que faz Matthews? Para além do facto óbvio de procurar redesenhar a história fabulosa dos seus pais para reconfigurar a sua própria história com eles (na verdade Matthews não se apercebeu nunca de vestígios de uma grande história de amor no quotidiano que lhe foi dado viver com os seus pais, e ele não nos engana a esse respeito) o que ele vai fazer ainda é recuar uma geração e encontrar no seu avô materno o início de uma história essencial da sua própria relação com a Rússia.
O livro foi lido com aquele incómodo de quem espreita vida alheia inadvertidamente. É um testemunho de um homem emocionado com o passado dos pais, e profundamente apaixonado pela história de vida da pequena Luydmila, sua mãe. Não que o autor procure sentimentalizar-nos relativamente ao tema, mas de facto é uma história sentimental a que ele não pode escapar, e nós por arrasto pela sua leitura. Não há mal nenhum, claro, mas não deixa de ser uma manifestação de algo intenso da esfera do privado.
A arbitrariedade das decisões políticas que pesam sobre toda a existência de um indivíduo é o tema constante de toda a obra. E, mais ainda, da dor suportada por causa dessa arbitrariedade. E não é só sobre trágico destino de muitos dos filhos de Estaline que ele escreve, mas também sobre o trágico destino de muitos filhos de Putin, por exemplo. E ainda sobre o seu drama particular como filho da Inglaterra e da Rússia, desta mesma terra russa que descobre a democracia para mais rápida e profundamente se desapontar com a todas as suas expectativas. Como se a democracia tivesse que transfigurar os cidadãos apenas pelo uso mágico do seu nome na negociação política. Como se a aplicação dos usos democráticos não tivesse que vencer lastro com séculos de má governação.
Um poder voraz, é o que Matthews nos descreve ser o da Rússia. Um pouco como Cronos, o deus, também a Rússia devora os seus filhos, conta-nos ele.

Devia ter passado a Páscoa a pensar na pergunta* de Maria junto da sepultura do seu filho, nesse filme que segui: "Onde estão os teus amigos, agora?"
Interessa-me muito saber onde ficaram eles de facto que não estavam ali. Não só para crerem, não, mas pelo amor ao seu companheiro morto.
*Parece que não há registo desta questão. Se não foi feita devia ter sido.

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