sexta-feira, maio 19, 2006

Estado de providência 3 – argumento do pôr em perigo

Sir John Everett Millais. A Dream of the Past -1857The Nightmare. Frederick Sandys -1857


Argumento do pôr em perigo: argumento utilizado contra todas as novas reformas, no sentido em que por este se defende que os custos da adesão a uma nova ideia, programa ou acção, poderão ser, em muito, superiores aos benefícios. A mudança ou transformação de um determinado estado de coisas é entendido como ameaçador da ordem que já se conseguiu conquistar.

Em Inglaterra, as conquistas nas dimensões civis, políticas e sócio-económicas deram-se historicamente de forma continuada e sequencial (como T.H. Marshall esquematizou), daí que seja evidente a utilização deste argumento, de forma também sequenciada no tempo, tal como Hirschman o identificou: crítica ao programa da democracia, pelo que ele poria em perigo a liberdade individual, e crítica ao Estado de providência pelo que ele poria em perigo a liberdade, ou a democracia, ou as duas. Este argumento assenta no pressuposto de que todos os progressos que vêm de novo porão em risco de desaparecimento, ou suspensão, os progressos antigos.

Em Portugal, e no contexto de uma tradição cultural e literária deixada pela simbologia Camoniana, este argumento poderia ser entendido como o da “voz do velho do Restelo”. Não se deve tomar as conquistas antigas como garantidas quando se avança para a obtenção de novas formas de vida, estas poderão fazer perigar o que anteriormente já se conseguiu obter, e fazer-nos retroceder no tempo, poderia dizer o “velho do Restelo” aos nossos reformadores.

O argumento de Keynes a favor de uma maior intervenção estatal na economia, como resposta à crise económica vivida em Inglaterra no anos 30 do século passado, é fortemente contestado por F. Hayec, que em 1944 escreve o seu Road to Serfdom, procurando defender a tese de que a interferência do governo como regulador do “mercado” levaria à destruição da liberdade. Não que ele não defenda a necessidade de toda a gente poder contar com um mínimo para a sua subsistência, não, até porque a Inglaterra pós Primeira Grande Guerra manifestava fortes vínculos de solidariedade social e não o compreenderia se ele dissesse o contrário. A sua crítica ao Estado de providência é de outra ordem, revela-se contra o tipo de economia planificada a que um Estado assistencial teria que obedecer para assegurar a segurança a determinados grupos sociais. Hayec temia que o valor da segurança social prevalecesse sobre o valor da liberdade individual. O seu argumento justifica-se pelo raciocínio que continha 4 passos: 1. O acordo geral só é obtido relativamente a um número reduzido de temas; 2. para ser democrático, um governo tem que ser consensual; 3. como as pessoas têm um limitado número de tarefas às quais dão o seu acordo, o Estado democrático tem que confinar-se a esse número de tarefas; 4. quando o Estado procura exceder as suas funções nesses temas que são particularmente passíveis de ser alcançados por consenso, só o poderá fazer por coação, obrigando os seus cidadãos a aceitar o que não estavam preparados para fazer, sendo assim destruída a democracia e a liberdade.

Nos anos 60, com o seu The Constitution of Liberty, Hayec reforça a sua crítica, e rebela-se contra a concepção de economias planificadas de acordo com uma noção de justiça social que o autor considera ser particular a uma ideologia, e que não é extensível à forma de agir e pensar de toda a comunidade, pese embora esteja a ganhar uma adesão formidável junto da opinião pública mundial, com a adopção generalizada nos países ocidentais, de uma legislação marcada pela agenda do social. Facto este que o autor considera como forte indício de submissão acrítica dos indivíduos a uma ideia socialista da partilha dos rendimentos, que poria em perigo a sua liberdade de acção individual na escolha da sua forma de vida na sociedade.

Mas a crítica generaliza-se quando a popularidade às políticas do Estado de providência começa a baixar, por motivos de crise económica e social no fim dos anos sessenta. A guerra do Vietname, o choque petrolífero, as revoltas estudantis, são acontecimentos que vêm introduzir perturbações no sistema económico e no político, e o argumento do pôr em perigo surge com uma nova roupagem: o Estado social terá cavalgado o sucesso económico do período pós Segunda Grande Guerra, e terá deixado exangue o sistema económico. Qual moscardo no dorso do jumento, era agora necessário enxotar as amplas garantias do sistema de segurança social para renovar as forças da economia, pensam as forças mais conservadoras da direita; qual amiba sem manifestar intenções de pôr a nu as contradições e os limites do sistema económico provido pelo capitalismo, pensam as forças mais reformadoras da esquerda.

De ambos os lados do espectro político surgem as críticas ao Estado de providência. E a crise do capitalismo é explorada tanto pela esquerda, que põe a nu as contradições entre as duas funções do Estado moderno, a “acumuladora” e a “legitimadora”. A primeira que se desenvolve na esfera das relações capitalistas, a segunda que se manifesta pelas relações de assistência social que conseguir garantir junto da comunidade (primeiras obras de O`Connor e J. Habermas). Como é explorada pela direita, que evoca que a função legitimadora põe em risco a saúde da economia, da “acumuladora”, levando a uma crise que põe em jogo a própria democracia.

Mal chegados nós à nossa democracia, e num particularmente controverso ano na história da política portuguesa, é publicado em 1975 o relatório de especialistas na análise da crise política generalizada no mundo ocidental, da comissão trilateral formada por membros da Europa ocidental, do Japão e dos E.U.A , sob o título “The crisis of Democracy”. Deste documento destaca-se a opinião de S. Huntington, um americano que sublinha que o estado de crise das democracias se deve à falta de autoridade do Estado, e daí a crise no governos, que ao terem expandido as suas funções para campos cuja complexidade social excede a das suas competências, conhecimentos ou poderes, expõe a comunidade ao sentimento de insegurança social, policial e militar, que tem por efeito a degradação dos sistemas que já se tinham alcançado, provocando o declínio na concepção do que é uma boa acção política.

Hirschman termina por dizer que afinal os países que eram ditos como à beira do desgoverno total nos anos setenta, continuam hoje a ser referenciados como países com os mais elevados índices de qualidade de vida, a procurarem o aprofundamento das liberdades civis e políticas, a tentarem garantir meios de subsistência a todos os cidadãos.
Que as críticas ao sistema continuam, e, obviamente, são fundamentais para as necessárias reformulações ou transformações, não há dúvida. Mas há que ter cuidado com essas profecias acerca do que o que ganhamos com qualquer nova aplicação tecnológica, ou social ou política, que acrescenta mais direitos ou mais conhecimentos, é sempre de menor grau do que aquilo que temos a perder, porque:
1. The prophecies turn out to be absolutely correct – except for the occasions when they are not.
2. As the frequency with which such statements are made is considerable in excess of what occurs “in nature”, there must be some inherent intellectual attraction in advancing them.”
(p. 122, RR)
Qualquer reforma social poderá ser entendida como algo do género, “ceci tuera cela”, “isto mata aquilo”, como nos diz Hirschman, que visualiza como o único argumento avançado por todos os que ao analisarem sucessivas reformas no tempo, consideram sempre as últimas como as mais perniciosas. Mas também poderá ser entendida como, utilizando o argumento do apoio mútuo ou da complementaridade, já que uma “reforma ou instituição já estabelecida do tipo A pode ser reforçada , ao invés de enfraquecida, por um projecto de reforma ou de instituição do tipo B; sendo B actualizado para dar robustez e sentido a A; sendo B necessário como complemento de A” (p.124, RR)

Na realidade, quando B surgiu (tomando por B o Estado de providência) o que se procurava com ele era salvar o sistema capitalista dos seus excessos que o estavam a condenar (o desemprego, a emigração de massas, a desagregação das comunidades rurais, dos grupos familiares), por um lado, e, por outro, promover a educação geral e a capacidade financeira de todos os que tinham direito a votar, para que nem o sistema ficasse refém da sua incompetência na acção política, nem eles reféns de políticas que não servissem interesses gerais. Com B procurou-se complementar as reformas de A (liberdades e sufrágio universal) anteriormente conquistadas.

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