sexta-feira, maio 26, 2006

Victor Hugo 2 - As mulheres e a vida sexual

Ary SCHEFFER (Dordrecht, 1795 - Argenteuil, 1858), "Les ombres de Francesca da Rimini et de Paolo Malatesta apparaissent à Dante et à Virgile", 1855.


Escreve ainda Lynn Hunt no IV volume da História da Vida Privada: “Na obra de Sade a liberdade, a igualdade e até a fraternidade eram ao mesmo tempo glorificadas e desviadas. A liberdade era o direito à procura do prazer sem consideração pela lei, pelas convenções, pelos desejos dos outros (e esta liberdade, sem limites para alguns homens, significava em geral a escravidão das mulheres escolhidas). (…) Por uma espécie de falseamento tocqueviliano, a igualdade e a fraternidade entre os homens servem apenas o seu despotismo total sobre as mulheres. (…) Não podemos considerar Sade como o verdadeiro representante das atitudes para com as mulheres durante a Revolução; no entanto a sua obra chama a atenção para o papel desempenhado pelas mulheres como personagens privadas” (pp. 48 e 49).

Na biografia de Max Gallo não se escamoteia, nem se exalta, descreve-se, o comportamento desse "fauno" “après-midi”, Victor Hugo. O erotizado olhar no casto corpo do jovem Hugo vai transforma-se no olhar de um adulto sexualmente predador. Ponderei sobre o uso da palavra. Não deixa de ser perturbador, quer os ritos castradores da sua mesquinha nora Alice, sempre vigilante do comportamento sexual do ancião Hugo procurando limitar os eventuais estragos na sua imagem social, quer a concupiscência infatigável do escritor.

Não é a sucessão absolutamente alucinante de relações sexuais, com uma sucessão espantosa de mulheres, que relevo absolutamente, mas sim o facto de Hugo ter recorrido frequentemente à sedução das criadas da família, tivessem elas a idade que tivessem e independentemente da sua situação social. O facto de sistematicamente as procurar quando elas muitas das vezes já estavam a dormir, de se insinuar junto de pessoas que dependiam dos seus humores como patrão. O corrupio, entremeado por múltiplas relações com mulheres de outras classes sociais, é estonteante, num corpo que não se sacia com ninguém, e que nem a idade apazigua.

Até à revolução, este comportamento sexual fazia escola também em Portugal. É-nos fácil ainda hoje encontrarmos pessoas jovens que falavam do tempo em que pais e tios procuravam as criadas da casa, respondendo à nossa indignação com: “Elas gostavam, e esperavam que isso mesmo acontecesse!”. Acalmam com esta afirmação que tipo de consciência? Quantas porteiras, criadas de servir, mulheres-a-dias, assalariadas rurais e fabris não foram várias vezes postas, sem o desejarem ou preverem, perante este comportamento agressivo dos seus patrões? Quantas não tiveram que responder a desabusados convites, quando não mesmo desabusados avanços sexuais, sobre as suas pessoas? Fica no silêncio com que quase sempre as mulheres arrumam o seu passado, ajudando a ocultar a falta de responsabilidade social, e de dignidade no trato, de certos grupos sociais e económicos mais favorecidos para com os seus subalternos, em Portugal.

Em Victor Hugo, a sucessão de comportamentos sexuais compulsivos é delirante, o senhor é “voyeur”, é amante, é onanista, tudo ao mesmo tempo e em múltiplas relações. M. Gallo dá-nos conta de que o escritor tem rebates de consciência quanto ao poder estar a usar as jovens criadas, aproveitando-se da sua situação social mais frágil e dependente, sentimentos que, aliás, nunca são impeditivos de ele as tentar seduzir, mesmo que esteja sempre a dizer a si próprio que não as força nunca a nada, que elas lhe dão consentimento, que as gratifica monetariamente, que lhes dá atenção, que procura ensiná-las a ler, tirá-las da ignorância e dar-lhes um tecto numa casa com segurança.

E no entanto, como Gallo permite ver, não há uma separação entre o labor infatigável do artista, pois o escritor é prolixo na arte de escrever, e a manifestação da sua energia sexual. Um estado não sublimava o outro. Aqui a explicação freudiana da arte embateria na figura enérgica e vital de Hugo. O autor dedicava tanta vontade e energia ao exercício da escrita, como à activa procura de parceira para satisfação sexual.

Algumas jovens criadas, constata ele com regozijo e gratidão, voltavam mais tarde, já casadas e com filhos para o virem visitar, e enquanto os maridos e a prole esperavam no jardim, Hugo entregava-se ao prazer com a parceira a quem, escreve ele, tinha o cuidado de remunerar no fim da visita. Desconfiava ele que era a miséria das suas casas que as levaria ali uma vez mais? Quer não seria sobretudo pela troca de prazeres que elas o procuravam? E quantas dessas mulheres ao longo da vida não terão engravidado do escritor? Victor Hugo nunca parece ser assaltado por esse cuidado nos seus diários, e Gallo também não levanta a suspeita, mas eu surpreender-me-ia muito que a sua descendência não fosse mais alargada do que a que ele assume publicamente. No fim da vida, Hugo só tem viva uma de entre os cinco filhos que teve com a sua mulher Adèle Foucher. E quando morre, só os dois netos do seu filho Charles, crianças ainda, estão vivos para acompanhar e homenagear a sua figura. A filha há muito que não partilhava a sua intimidade doméstica, internada num hospício.

V. Hugo tem uma forte consciência social acerca dos desvalidos e da sua situação de miséria e de sujeição, ele conhece a realidade dos bairros pobres de Paris e da vida miserável dos aldeões franceses, belgas e britânicos por onde viveu, e para onde se exilou, sabe por isso que a origem social daqueles raparigas não lhes permite ter o mesmo grau na liberdade de escolha que qualquer outra com condições monetárias mais favoráveis. Sabe, mas não se coíbe de entrar no seu leito a qualquer hora da noite.

Mesmo assim nós percebemos que aquelas mulheres com posição social mais elevada, continuam dependentes dos dotes dados pelos pais, ou da fortuna dos maridos. Não têm autonomia financeira, não são verdadeiramente donas da sua vontade. Juliette, a jovem actriz por quem ele se apaixona ainda quando jovem marido, e com quem mantém uma relação íntima até à morte dela, pouco tempo antes da sua própria, é de uma fidelidade canina para com um homem que, sentindo-se sempre profundamente grato pelo desempenho que ela tem na sua vida, já não a ama com paixão. Mas como deixá-lo? Ela que o ama ilimitadamente, e de quem depende economicamente. Quem lhe pagaria as suas despesas domésticas? Quem lhe garantiria, e à filha, um tecto? Os sentimentos de submissão e revolta, de entrega e de desespero são uma constante na alma daquela mulher, que, porém, o segue obsessivamente por todo o lado, vigiando pela sua saúde, pelo seu bem-estar, pela sua obra e pela própria defesa da sua própria vida, quando esta fica em perigo por ordem de execução dada pelo ministro do Interior do governo de Luís Napoleão (“le petit”, como ele lhe chama, o pequeno tiranete), em Dezembro de 1851.

É verdade que Hugo as respeita intelectualmente, ele lê-as, ouve-as, há mulheres de quem se torna grande amigo, tomando-as por confidentes, por críticas do seu trabalho, por revisoras dos seus textos, mas não só as tenta sempre seduzir primeiro, quando se inicia o convívio, como não questiona o papel social que elas tomam na sociedade; sejam elas as suas amantes actrizes, senhoras bem casadas, prostitutas ou belas jovens, fascinadas com as obras literárias e com o prestígio de Hugo.

Já velho, e mesmo assim encantadoras ninfetas volteavam à sua volta, encantadas com o efeito que as suas graças naturais despertavam naquele homem que achavam maior que a vida, e que as cumulava de atenções.

Hugo não era um misógino. Nunca. Era apenas um homem que vivia literalmente de acordo com a última anotação do seu caderno minutos antes de morrer: “Amar é agir”. (p.423, Biografia de Victor Hugo por Max Gallo, Public. Europa-América). Amava e agia de facto, na política, na escrita, mas sobretudo no desejo pelas mulheres. Um desejo que agia sobre ele extensivamente, imperiosamente, sem se deter perante o que fosse, estranhamente num espírito livre, submetendo-o à sua tirania.



Conversa entre amigas:
- Estive a ler a biografia de César, por Max Gallo, e mais tarde li a de Victor Hugo, pelo mesmo autor. Bom, César, quando não andava a espadeirar Europa fora, estava na cama com o primeiro ser humano que passasse por perto. Victor Hugo quando não estava a escrever, estava na cama com a primeira mulher que encontrasse disponível. E ambos várias vezes ao dia, todos os dias.
Não… - respondeu-me admirada E., e logo acrescentou: “Tu não achas que essa é a fantasia de Max Gallo?”

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