quarta-feira, julho 12, 2006

Mundo analógico

Nos arquivos da Pide/DGS que se encontram na Torre do Tombo (sendo que nesta se encontram também das mais competentes e simpáticas de todas as pessoas que trabalham na secção de referências das bibliotecas que eu conheço), podemos ter acesso aos dossiers onde se guardam os recortes da imprensa estrangeira quando nesta se fazia referência a Portugal. Artigos de algum modo avaliados como possuindo mensagens passíveis de perturbarem a ordem social como a definiram no Estado Novo.
No blogue História e Ciência fez-se um pouco de história da Pide.

Um dos recortes, guardados e sublinhados, data do dia 6 de Junho de 1969. Nele um jornalista francês escrevia no periódico “La vie francaise” um artigo subordinado ao título “Portugal nos Trópicos”. Faz alguns comentários mordazes à nossa colonização, nomeadamente afirmando que a segregação portuguesa entre brancos e negros era de cariz monetário, sendo por isso de um carácter mais insidioso, porque menos afirmativo, do que a segregação sul africana (!), descreve o estado de profunda distracção da população relativamente aos assuntos sociais provocado pelo futebol (!), e sobretudo pela comoção à volta da figura de Eusébio, e conclui com os seguintes termos:
“Não sei como ou quando acabará a aventura: porque é uma aventura esboçada com Henrique o Navegador, inaugurada com Vasco da Gama, prolongada até ao nosso século. Mas sei bem que, se os portugueses se forem embora, ou os seus domínios africanos serão entregues às paixões e às guerras tribais, ou outros colonizadores os substituirão”.
Os portugueses tinham que vir embora e... bom, não foram de modo nenhum guerras tribais as guerras que, quer durante o tempo colonial quer após a colonização, assolaram as nações africanas de expressão portuguesa; foram guerras ideológicas e, sobretudo no caso de Angola, guerras pela conquista das suas fontes de riqueza. Potenciadas por quem? Que outros “colonizadores” estariam a vigiar esses territórios para os virem a ocupar? Dizia o jornalista que seria ou a Rússia ou a China com o seu imperialismo político, ou então a América com o seu imperialismo mercantil e financeiro. Só falhou por não perceber que também outras nações, como Cuba, em Angola, ou a Itália, em Moçambique, por exemplo, iriam ter analogamente um papel nada displicente quando chegasse a hora de discutir a divisão dos poderes dessas novas nações.

Volvidos estes anos, sabemos que os imperialismos não estão à distância de uma definição clara e distinta entre dois blocos identificados. Que hoje não são só os americanos a seguir as práticas imperialistas/mercantis dos cartagineses, como os definia o jornalista, subestimando nos seus costumes o poder do imperialismo político, assim bem o imperialismo político aprendeu rapidamente como adequar as práticas mercantis aos seus desígnios totalitários, no caso da China, e, no caso da Rússia, ainda estamos por descobrir que tipo de regime autoritário/iluminado é aquele.

Se nenhum dos países referidos se pode definir hoje no mundo com o papel que tinha em 69, a verdade é que os blocos parecem querer manter-se com a mesma dinâmica de intervenção nos assuntos internacionais. Nos mais diversos objectos de discussão quanto à possibilidade de uma política externa internacionalmente concertada, seja sobre a Coreia do Norte, a Palestina, o Iraque, há sempre dois pesos e duas medidas que se extremam propositadamente. E a balança continua a pender para o lado do que souber ou puder defender melhor os seus interesses nacionais em cada momento.
O resto do mundo tem que continuar a procurar deixar de ser mexilhão, sem investir porém na atitude de peixe-balão. Não é fácil.

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