"Olhe, deixe-me ver, foi aí por volta de 1862 ou 63, numa noite macia de Abril ou Maio. Atravessando lentamente, com as sebentas na algibeira, o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem de pé, que improvisava. A sua face, a grenha densa e loira com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguada, à maneira siríaca, reluziam aureoladas. Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII - mas um Bardo, um Bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O Homem com efeito cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura... Deslumbrado, toquei o cotovelo dum camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo: «É o Antero!». Então, perante este Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na vida."
Eça de Queirós, "Um génio que era um santo" in Notas Contemporâneas, edições livros do Brasil, Lisboa, pp. 285.
2 comentários:
Ora muito bem, gostei do seu blog! Divagava pelo blogger quando acidentalmente dei consigo e passei um bom bocado a ler os seus textos tão bem escolhidos. Neste turbulento mundo que é a net sabe bem, de vez em quando, encontrar alguma qualidade... continuação de um bom trabalho. Cumprimentos.
Muito obrigada.
isabel
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