domingo, dezembro 17, 2006

Utopia

A minha amiga Ayetsa enviou-me um texto da sua Venezuela para eu ler. É um texto apologético de uma certa ideia de Hugo Chávez. O que, pessoalmente, me deixa indiferente. Em democracia há os discursos dos apoiantes e há o dos opositores. Movimento natural do pêndulo político que, por não querer pensá-lo quanto à sua origem e natureza, não posso deixar que me afecte agora. Não aprecio o estilo do texto, mas não é ele que me provoca a escrita, e sim o seu conteúdo. O dito texto é escrito com um discurso que exalta a ideia de que uma nova época vai começar na América do Sul em geral e na Venezuela em particular (mas Chávez é eleito agora pela primeira vez? Não teve já tempo de ter começado antes o que quer que tenha prometido desse futuro novo?), a época do bolivarismo (os portugueses reconhecem bem este território nebuloso da espera de uma figura mítica) que, no caso de uma parte da América Latina, se manifesta na assunção de que confluem as circunstâncias necessária para um ressurgir dos valores ditos ser os que estariam encarnados na figura do libertador Bolívar, que, segundo Cifuentes, sempre procurou transformar a utopia em realidade. E que utopia era essa? A “maior suma de felicidade para o povo”.

Folclore Chavista à parte, porque eu não sei se os valores do discurso político da América Latina não reflectirão exactamente um tipo de simbolismo mágico-religioso da sociedade em questão e que no ocidente seria considerado anacrónico (para dizer o mínimo), sem querer com isto revelar uma atitude condescendente para com o fenómeno, e sendo certo que a mim jamais me convenceriam a votar num indivíduo que utiliza o tipo de discurso maniqueísta de Chávez, o que não me impede de respeitar quem o faz, não deixo de me interessar profundamente por políticas que visam suprimir a miséria no mundo. Mas chegada a este ponto começo a divergir em tudo o mais. A utopia, tema que me é caro, é um nível intelectual de exigência para a acção e para o pensamento, e não um modelo passível de ser transmutado em realidade. A utopia, nos autores que Cifuentes cita, como a utopia de Platão, de More e de Campanella (e que diferenças há entre estas propostas a utopias) são ideias que servem para gerar outras ideias com o intuito de regular modelos de acção. Procurar que ao invés de gerar ideias a utopia se apresente sim como capaz de gerir ideias e acções é algo que qualquer aprendiz de utopia sabe que dá desordem social na certa. E desordem social destrutiva, não criadora. E porquê? Porque querer realizar uma utopia é como querer realizar uma visão que se tem para o universal sem se preocupar com a reacção do individual. Como se a existência dos indivíduos se diluísse na existência da ideia de indivíduos. E para quem conseguir fazer coincidir a sua acção com a acção proposta, isto é, para quem fizer coincidir a sua vida com a ideia que se tem do que deve ser a sua vida, deve haver alguma exaltação, como se do encontro da pessoa com o seu destino se tratasse, não sei, deve ser exaltante, momento único da história do indivíduo a coincidir com o da história, mas o que acontece a quem não se reconhece nesse modelo e pretende inverter o movimento que impele o grupo, mesmo que em maioria? É eliminado? Em democracia querer realizar utopias é o prenúncio de uma vontade não democrática de governar. Porque a utopia sobrepõe-se à possibilidade de ser discutida. Recusada até, por quem o entender. Ela é profundamente anti-democrática na sua versão operatória, ainda que em democracia ela possa servir como catalizadora de apresentação de projectos sociais e políticos, que, claro, terão que ser postos à discussão de forma ininterrupta. Como eu julgo.
Há quem veja na negociação uma fraqueza da democracia: Os espíritos prepotentes e os desejosos de serem submetidos.
Em democracia a noção de “suma felicidade para o povo” tem que ser escrutinada. Não é possível governar com este propósito ético. Porque a felicidade para o povo é o quê? Alcança-se de que forma? E a sua felicidade é diferente da felicidade para a pessoa?
A suma felicidade parece ser materializada na libertação da exploração do capital e a sua libertação do império, mas que felicidade é esta? Quantos cabem nela e o que se deve fazer para aceder à mesma? Está-se disposto a fazer o quê que se exceda, ou se limite, nos propósitos de um governo democrático num Estado de direito?
E sendo que alguma solução económica a política terá que encontrar para permitir que se acabe definitivamente com as situações de pobreza e que alguma solução política a economia terá que aceitar para que uma sociedade não se estratifique de forma amomível e dominadora. Mas com este discurso não me parece que se vá numa direcção muito reflectida. Há muitos heróis num filme que não deixa de parecer um simulacro de uma qualquer possível realidade heróica. Ainda sem sairem do quintal da casa dos filmes do império. Mas que sei eu, amiga. Só de alguns exemplos infelizes de utopias que se quiseram viver no passado. Bons augúrios para a Venezuela.

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