segunda-feira, janeiro 15, 2007

Nocturno Indiano

“O que é que fazia em Calcutá?”.
“Fotografava a objecção”, respondeu Christine.
“Que quer dizer com isso?”.
“A miséria”, disse ela, “a degradação, o horror, chame-lhe como quiser”.
“Porque o fez?”.
“É o meu ofício”, disse ela, “pagam-me para isso”.

Fez um gesto que podia significar resignação à profissão da sua vida, e depois perguntou-me:”Já alguma vez esteve em Calcutá?”.


Abanei a cabeça. “Não vá lá”, disse Christine, “nunca cometa um erro desses”.
“Pensava que uma pessoa como você achasse que na vida é preciso ver o mais possível”.
“Não”, disse ela convicta, “é preciso ver o menos possível”.


Nocturno Indiano de Antonio Tabucchi, ed. Quetzal, p. 102.

Pouco tempo depois de sair o livro, soube de um casal conhecido que tinha ido para a Índia e seguido o itinerário sugerido pela personagem. “Que romântica delícia”, pensei eu na altura. Mas fiquei a saber demais desse casal para continuar a pensar assim. Quanto menos se sabe mais se pode efabular.

Naquele dia, perdido o comboio para Istambul, a Eunice eu ficámos sentadas no chão da estação ferroviária de Belgrado, encostadas às nossas mochilas e literalmente a ver passar os comboios. A Eunice propôs-me um jogo para ajudar a passar aquele longo tempo de espera: observar atentamente cada pessoa que passasse e comentá-la. Ao fim de um tempo eu tive que parar, nauseada e cheia de dores de cabeça. Já nos lavabos procurei reencontrar a minha natureza. Como a Eunice sabia, eu era a que tentava ver o menos possível.

Como é que a miséria humana, e a irrelevância/incongruência democrática de um sistema social de castas, podem passar ao lado de um crescimento de aproximadamente 9% ao ano?
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