quarta-feira, fevereiro 28, 2007

"As madrugadas já não são o que eram" por Teresa Marques

Ilustração de John Tenniel para o livro Alice no País das Maravilhas
Da minha amiga Teresa Marques. Eu não poderia ter escrito nada melhor, daí ter retirado o texto da forma "comentário" e tê-lo posto aqui em destaque.


"E porque a nossa História é rica em referências aproveito para começar por citar Antero de Quental, in 'Prosas da Época de Coimbra':“Um dos piores sintomas de desorganização social, que num povo livre se pode manifestar, é a indiferença da parte dos governados para o que diz respeito aos homens e às cousas do governo, porque, num povo livre, esses homens e essas cousas são os símbolos da actividade, das energias, da vida social, são os depositários da vontade e da soberania nacional. Que um povo de escravos folgue indiferente ou durma o sono solto enquanto em cima se forjam as algemas servis, enquanto sobre o seu mesmo peito, como em bigorna insensível se bate a espada que lho há-de trespassar, é triste, mas compreende-se porque esse sono é o da abjecção e da ignomínia. Mas quando é livre esse povo, quando a paz lhe é ainda convalescença para as feridas ganhadas em defesa dessa liberdade, quando começa a ter consciência de si e da sua soberania... que então, como tomado de vertigem, desvie os olhos do norte que tanto lhe custara a avistar e deixe correr indiferente a sabor do vento e da onda o navio que tanto risco lhe dera a lançar do porto; para esse povo é como de morte este sintoma, porque é o olvido da ideia que há pouco ainda lhe custara tanto suor tinto com tanto sangue, porque é renegar da bandeira da sua fé, porque é uma nação apóstata da religião das nações - a liberdade!” - Pois que adormecido este povo permanece nas memórias de outros tempos é legítimo perguntarmo-nos: Será a democracia sinónimo de aceitar que as vontades de pseudo-maiorias nos obriguem a fazer parte de uma amálgama de figurantes que assiste impávida e serena ao desenrolar da trama que nos rege? E que, absurdamente, vibra com a acção esfusiante e fantástica desses actores eleitos sob as luzes da ribalta? Pois que nos teremos de questionar seriamente sobre que figurante seremos, somos ou gostaríamos de não ser!


Mas, e porque a noite urge e as madrugadas já não são o que eram, relembro Aldous Huxley, in “Sobre a Democracia e Outros Estudos”:“Os defeitos da democracia política como sistema de governo são tão óbvios, e têm sido tantas vezes catalogados, que não preciso mais do que resumi-los aqui. A democracia política foi criticada porque conduz à ineficiência e fraqueza de direcção, porque permite aos homens menos desejáveis obter o poder, porque fomenta a corrupção. A ineficiência e fraqueza da democracia política tornam-se mais aparentes nos momentos de crise, quando é preciso tomar e cumprir decisões rapidamente. Averiguar e registar os desejos de muitos milhões de eleitores em poucas horas é uma impossibilidade física. Segue-se, portanto, que, numa crise, uma de duas coisas tem de acontecer: Ou os governantes decidem apresentar o facto consumado da sua decisão aos eleitores - em cujo caso todo o princípio da democracia política terá sido tratado com o desprezo que em circunstâncias críticas ela merece; ou então o povo é consultado e perde-se tempo, frequentemente, com consequências fatais.
Durante a guerra todos os beligerantes adoptaram o primeiro caminho. A democracia política foi em toda a parte temporariamente abolida. Um sistema de governo que necessita ser abolido todas as vezes que surge um perigo, dificilmente se pode descrever como um sistema perfeito.”


Pois que estamos encurralados! Resta-nos a esperança na “missão do chamado «intelectual» que é, de certo modo, oposta à do político. A obra intelectual aspira, frequentemente em vão, a aclarar um pouco as coisas, enquanto a do político só, pelo contrário, consistir em confundi-las mais do que já estavam. Ser da esquerda é, como ser da direita, uma das infinitas maneiras que o homem pode escolher para ser um imbecil: ambas, com efeito, são formas da hemiplegia moral” (Ortega y Gasset, in 'A Rebelião das Massas')


E para terminar à boa maneira infantil:-Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?-Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.-Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice.-Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.(Lewis Carroll -Alice no País das Maravilhas).

Teresa Marques

Sem comentários: