quinta-feira, março 01, 2007

Identidade 1


John Tenniel, Ilustração







A criação da identidade é sempre colectiva. Di-lo a sociologia contemporânea. Parece estranho que aquilo que seja mais singular de cada um o seja em combinação com a pluralidade. Estranho e por vezes perturbador, sobretudo se eu nego em mim aquilo de que não gosto em qualquer outro, ou se eu nego sequer admitir a contribuição da ideia que o outro tem de mim na construção da minha identidade. É neste sentido que procuramos muitas vezes ter sempre a última palavra, para evitar a caracterização de outrem que não nos diz de todo, ou assim o pensamos. Ou, num exemplo mais intelectual, é o tipo de exercício que o filósofo Richard Rorty diz ter sido conduzido pelo meu bem amado Proust. O que terá feito Proust? Escrito um romance que pusesse um ponto final no que fosse ser dito dele depois dele, ou apesar dele. Uma ilusão, como o prova as muitas biografias sobre ele aí existentes, ou não, porque apesar de tudo o que se sabe, sabe-se a partir da leitura da obra, fonte primeira de toda a informação?

A descrição que satisfaz a um sujeito requer o quê? O discurso de um apaixonado? De um amigo? O que suporta ele de lucidez e de análise, por contraposição ao discurso evocativo e exortativo das características da sua personalidade? O que estamos dispostos a ouvir, ou a não ouvir? Que mentiras dizem os outros sobre nós ou nós sobre eles, e como isso afecta a nossa identidade, e que verdade admitiremos como a verdade? Seremos transmudados pelas nossas auto-narrativas e pela dos outros? Eu penso que sim. E a nível colectivo também?

2 comentários:

Anónimo disse...

“Não nos contentamos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser: queremos viver na ideia dos outros uma vida imaginária e para isso esforçamo-nos por manter as aparências. Trabalhamos incessantemente para embelezar e conservar o nosso ser imaginário, e descuramos o verdadeiro. E se temos ou a tranquilidade, ou a generosidade, ou a felicidade, apressamo-nos a apregoá-lo, a fim de atribuir estas virtudes ao nosso outro ser, e se fosse preciso estaríamos prontos a despojar-nos delas para as juntar ao outro; de bom grado seríamos cobardes para adquirirmos a reputação de valentes. Grande sinal do nada que somos, não nos contentarmos de uma coisa sem a outra, e trocarmos muitas vezes uma pela outra! Pois quem não morresse para conservar a sua honra seria infame.” Blaise Pascal, in 'Pensamentos'

“Que estranho «eu» é pois este que de algum modo dir-se-ia predominar na filosofia e na literatura de hoje? Porque é evidente que uma forte tendência da arte de hoje, do homem actual, apela para a comunicabilidade, para uma fraternidade, e não para um estéril isolamento. Mas acontece que nesse apelo muitas vezes se esquece o que há aí de mecânico, de superficial, de relações externas, imediatas, provisórias, que nos não satisfaz inteiramente. O homem que aí fala é o que se ensurdece a si próprio, às suas vozes profundas, aos avisos que se anunciam desde o limiar da solidão.” Vergílio Ferreira, in 'Espaço do Invisível I (Do Homem e do Indivíduo)'

“Porque se neste instante me sobreponho, ao que sou, outra maneira de ser - a consciência que me altera o primeiro modo de ser é a paralela iluminação do modo de ser segundo. Decidi ainda antes de decidir, quando decidi não ser o que primeiramente decidira. Assim no torvelinho dos actos que me presentificam e da consciência desses actos, sempre o insondável de nós se abre para lá do que podemos sondar. Sempre a realidade de nós é a realidade original que na origens se gera. Sempre a autenticidade de nós está a uma distância infinita das razões que a justificam.” Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'


“Se penso, existo; se falo, existo para os outros, com os outros.
A necessidade é o lugar do encontro. Procuro os outros para me lembrar que existo. E existo, porque os outros me reconhecem como seu igual. Por isso, a minha vida é parte de outras vidas, como um sorriso é parte de uma alegria breve. O futuro é uma construção colectiva.” António Arnaut, in 'As Noites Afluentes'


Ser ou não ser, eis uma questão que a todos nos inquieta... Quem sou EU? Um misto de eu e tu, de nós e vós... e tudo somente porque o Homem é “um ser cultural por natureza por ser um ser natural por cultura”.

Isabel Salema Morgado disse...

Belas referências, Teresa. Saudoso Virgílio Ferreira.
Mas apetece perguntar: E o que nos satisfaz completamente numa relação? E quando é que isso alguma vez aconteceu na história?

ism