quarta-feira, março 28, 2007

Ríctus de poder 2


“(…) Há tantos outros livros que falam da comédia, tantos outros ainda que contêm o elogio do riso. Porque é que este te incutia tanto pavor? p. 345,
- Porque era do Filósofo. Cada um dos livros daquele homem destruiu parte da sapiência que a cristandade tinha acumulado ao longo dos séculos. (…)
Mas se alguém, um dia agitando as palavras do Filósofo, e portanto falando como filósofo, levasse a arte do riso à condição de arma subtil, se à retórica da convicção se substituísse a retórica da irrisão, se à tópica da paciente e salvadora construção das imagens da redenção se substituísse a tópica da impaciente demolição e do desvirtuamento de todas as imagens mais santas e veneráveis…oh, nesse dia também tu e toda a tua sapiência, Guilherme, seríeis arrasados!
- Porquê? Bater-me-ia, a minha argúcia contra a argúcia alheia. Seria um mundo melhor que aquele em que o fogo em brasa de Bernardo Gui humilham o fogo e o ferro em brasa de Dulcino.”, p.347
A palavra humilhação outra vez. Vontade de, e poder para, humilhar.
No livro O Nome da Rosa, Umberto Eco põe as personagens do monge Jorge a dirimir argumentos com o Frei Guilherme sobre o segundo livro da Poética de Aristóteles (“aquele que todos consideravam perdido ou jamais escrito”). O bibliotecário Jorge, cego, guarda zelosamente e em segredo, na biblioteca de uma abadia “de que é bom e piedoso calar agora o próprio nome”, o último exemplar no mundo do livro do filósofo.

Frei Guilherme, chamado à abadia para ajudar a deslindar o mistério da morte do monge Adelmo Otranto depressa compreende que este foi assassinado e inicia as suas investigações. Mais mortes se seguem à de Otranto até que Guilherme descobre o autor dos crimes e o móbil para os homicídios: a curiosidade dos monges pelo livro secretamente guardado pelo bibliotecário Jorge e ao qual nenhum ser humano devia ter acesso.

O ricto do homem do poder está na gravidade ou no riso?

A tradição filosófica, a autoridade da palavra do Filósofo, fazia pressupor que era na gravidade que a dignidade do papel do homem de governação se exprimia. E era sobre “Cada palavra do Filósofo, sobre quem hoje juram mesmo os santos e os pontífices, subverteu a imagem do mundo. (…)” que se encontravam as regras de comportamento. Estas faziam que cada indivíduo agisse na terra como um indivíduo temente da ira da sentença divina, ou da sua justiça, após a morte. Mas se viesse a descobrir-se que o Filósofo escrevera um livro onde fazia a apologia do riso, então, defende Jorge, em breve a plebe e os falsos sábios poderiam espalhar a ideia de que era possível anular o medo da morte, libertando os homens para o pecado, para a miséria das paixões, aceitando-se a fraqueza como princípio de elevação até ao sagrado, ou fazendo da procura de uma vida boa na terra o objectivo da vida humana por oposição à demanda de uma vida vivida a pensar na vida eterna. O livro poderia pois passar a ser, se lido e divulgado, a “(…) centelha luceferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio; (…)".

É de um romance que se trata.
Mas esta questão de saber como se deve comportar o homem do poder é secular, tem, no ocidente, o tempo da filosofia ocidental, quando esta desvia a atenção da reflexão sobre as causas naturais da realidade física e começa a perguntar-se pelas causas da realidade social e política.
Os ríctus são ensinados. A sua não manifestação também. Como bem o sabem todos os especialistas contemporâneos da imagem e da comunicação política. Julga-se é que é só o hábito que faz o monge. Mas... e se forem as ideias?

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