quarta-feira, fevereiro 06, 2008

As reformas e o seu povo

Levámos o rapazinho a ver um desfile de Carnaval. O acto em si já era demonstrativo de um estado de espírito nosso que pressuponha que a participação no Carnaval passava antes de mais por um acto de contemplação, para usar um termo menos perverso e mais filosófico para nos descrever nesses momentos em que nos quedamos a olhar as acções dos outros, como se de fora viéssemos e aí quiséssemos ficar. Ficar a olhar o Carnaval…dos outros. Como se o ritual nos incluísse exclusivamente pelo acto de ficar a olhá-lo. Aconteceu na Nazaré. O rapazinho fixou, boquiaberto, os grandes tractores, os bonecos pintados, as roupas extravagantes, arregalou os olhos com a música estridente, marchou à passagem dos grupos que se movimentavam em rodas de cor. O rapazinho gostou de ver.
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A mãe e o pai do rapaz suspiraram, fizeram um sorriso triste um para o outro e encolheram os ombros, e o menino nem notou as reticências. O desfile…o desconforto com a situação, a incapacidade de nos ligarmos, de criarmos empatia com o acontecimento, a sensação de alheamento e de tristeza que perpassava por toda aquela audiência que mesmo assim se amontoava para ver passar os carros alegóricos.
No seu conjunto todos nós fazíamos uma mole cinzenta e preta, com agasalhos excessivos para o dia que apesar de tudo ia agradável. Uma multidão prevenida, pois não vá chover, não vá fazer frio à noitinha, não vá vir a nortada que o mar está ali a meia dúzia de metros a lembrar que é mais que a gente toda junta a olhar para os bonecos. Um Portugal de gente prevenida, de quem sabe que o diabo gosta de tecer as suas coisas.
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Sossegados a olhar, pardos na forma do corpo e tolhidos no movimento que não lhe deixam vislumbrar, ali estava o público. Passa o conjunto de um grupo todo gaiteiro em cima de um camião. Tocam para animar e pedem palmas ou gritos de incentivo e de entusiasmo, a multidão olha-os, reservada. Está circunspecta como em dia de procissão do Senhor dos Passos. Hoje é quarta-feira de cinzas mas nós todos já cá estivemos, ontem dia de Carnaval. Mesmo os que procuravam contrariar a multidão circundante, gingando as ancas e cantarolando as musiquitas. Mais unidos pela inércia do que pela participação festiva.
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Quem desfila finge que não vê os forasteiros que ali no passeio os vêm passar, por desfastio uns e outros a encenarem os seus papéis, mas olha, olha, como ali à frente já se acena e se sorri à família e aos amigos.
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Uns mais que outros, os grupos compõem a sua coreografia, para chamarem a si as atenções, quase sempre pífia: as atenções e as coreografias. Por comodismo, por falta de brio, de profissionalismo diria eu se não soubesse que muitas horas de trabalho amador ali se manifestam, sobretudo por falta de paixão e entrega. De dinheiro também, claro. Mas não é a falta de dinheiro que leva a que se amontoem casacos e latas de cerveja sobre os carros do corso, não é falta de dinheiro que faz com que os grupos se encostem aos molhos de três ou quatro, parados a conversar, a beber ou a fumar de cada vez que o cortejo pára, não é a falta de dinheiro que cobre a radical ausência de imaginação ou de loucura criativa, num pouquinho de atrevimento que fosse. Tudo quase previsível no desleixo das apresentações, na ausência de dinâmica de grupo.
Os tractores a desfilarem como se em manifestação de agricultores zangados com o ministro, não ajudavam, os carros mal decorados e com os geradores a produzirem um som mais alto que o da música, também não, os movimentos mal estudados e pior pensados dos grupos de baile, igualmente mau, tanto quanto a cadência do desfile a raiar o estado de sonolência. As roupitas da maioria dos desfilantes…bom não vou por aqui.
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Claro que também havia momentos de júbilo aqui ou ali. Um grupo grande de jovens raparigas adolescentes, animadas, alegres e cheias de graça, encantavam com os seus meneios, e perdoava-se-lhes até o inebriamento de cada uma por si própria e o esquecimento do seu serviço ao grupo. Pareciam uma nuvem e o efeito era engraçado.
Um outro grupo de mulheres mais maduras dançava ininterruptamente um samba suave, obedecendo à coreografia e criando uma execução de grupo agradável. Houve até um carro que desfilava a evocar o filme infantil Ratatui, bem conseguido nos adereços e com boa projecção para o exterior. Também não recorreram à ideia fácil de porem mulheres nuas a dançarem o samba. O que para muito homens deve ter resultado num prejuízo para a festa. Eu considerei o facto positivo. O que mais me impressionou no entanto foi ver três mães a desfilar levando consigo bebés pequenos. Uma delas sobretudo marchava levando ao colo uma pequenita adormecida, igualmente trajada com o mesmo rigor que a sua mãe. Comoveu-me. E isto num Carnaval que devia ser a celebração da loucura e da folia e eu vou logo emocionar-me com a mãe que leva a sua menina ao ombro enquanto procurava acompanhar as suas colegas a cantar e a dançar. Eu bem disse que tudo aquele sentimento me parecia mais próprio ao sentido numa procissão das velas. Mas havia ali uma grandeza numa linguagem popular e emocional que eu entendi. Foi assim.
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E os homens? Confesso que me pareceram todos patéticos, ou então sem espaço para se me imporem pelo que quer que fosse: pelas roupas ou pelas coreografias, pelo arrojo ou pela virilidade, pela diferença ou pela loucura. Quase sem história, não fosse eu recordar o desvelo e o carinho com que três ou quatro “comandantes” já de meia-idade trataram uma jovem “hospedeira” que um imberbe “comissário de bordo” arrastara pelo chão no decorrer de uma cabriolice mais estúpida do que engraçada.
Um dia brinquei de encenadora com As Bacantes, e li o que Eurípedes fez com os seus homens. Sei assim como eles se podem metamorfosear. E não os vislumbrei por ali. Mania minha.
- "Olha, agora traz para aqui Eurípedes... já cá faltava o apontamento erudito!"

Não sei se se sentia o distanciamento entre o público e os participantes no espectáculo. Eu sei que senti esse distanciamento. Mas isto de percepções valem o que cada sujeito quiser que elas valham.

Não há empatia a circular por ali, sentem os pais do menino, e no entanto não pode deixar de haver simpatia, talvez uma certa piedade pelo destino comum de que não gostamos, que não desejamos mas que de alguma forma reconhecemos. Conhecemos aquele cansaço, aquele ar mortiço, as cores debotadas dos cabelos e dos sobretudos, a gordura a mais de muitos corpos sem ânimo, a parolice de ficar a olhar a fraca festa de Carnaval dos outros, ou o desleixo de um desfilar sem brilho pela avenida abaixo e rua acima. Conhecemo-nos de outros Carnavais.


Saí de lá com mais um argumento para o facto de estar profundamente convencida que Portugal precisa de referendar rapidamente o regionalismo. Da primeira vez votei contra. Imaginei Portugal governado por milhares de homenzinhos como Alberto João (com a minha devida vénia aos milhares bem gastos em infra estruturas na Madeira) ou ao Pinto da Costa (com a minha vénia às vitórias do FCP). Votei contra. Parva. Imaginei ser preferível um país centralizado a ser governado por homenzinhos como Barroso, Santana ou Sócrates. Pelo menos, pensava eu, estes podem ser mais fiscalizados pela imprensa e pelo público. Parva. Como se não houvesse ou não pudesse haver imprensa regional igualmente com vontade, que o poder talvez seja mais débil, de ser tão fiscalizadora quanto a outra. Como se o povo de cada região não soubesse exigir mais de cada político liberto da desculpa do governo central ser um empecilho à política regional. Como se o povo português, que no seu conjunto parece apagadito, temeroso ou inerte, feio mesmo com as suas roupas sempre escuras, não fosse formado por indivíduos que se olhados na sua singularidade revelam forças: um carácter esforçado, empenhado, um brio em fazer bem assim entenda como, um espírito de sacrifício, uma vontade de cumprir metas, assim saiba para que lado elas ficam.
O que falta aos portugueses não é vontade de aceitar ou de fazer reformas, o que lhes falta, como sempre lhes faltou, foi quem lhas explicasse com respeito pelas suas opiniões e pelas suas experiências de vida. Faltou sempre quem amasse as multidões não pelos votos que delas pudesse receber mas pela ideia de democracia que só elas podem fazer evocar. Quem amasse a democracia, tanto quanto o povo em nome do qual se exerce o poder, amasse tanto a liberdade de cada indivíduo tanto como compreendesse esse amor inquestionável por um princípio. O resto são sevícias sociais. Não são reformas.
Um banho de loja e uma ida ao cabeleireiro também ajudava, não resolvia tudo, mais ajudava a dar mais cor ao pessoal enquanto espera que o desfile passe. Na Nazaré como na vida. Parolices, isto também, eu sei.

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