quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Uma nova ordem de reprodução cultural?

Agradeço desde já a referência que me foi feita no blog A Educação do meu Umbigo.


Sendo a nossa ministra da Educação especialista em sociologia das organizações traz essa marca formativa para as decisões que toma ou que corrobora com a sua assinatura. Há pois que perceber quais são os modelos explicativos da realidade em que a governante se ancora para estruturar os projectos que vêm para as Escolas da 5 de Outubro, isto se quisermos ter argumentos que a contrariem.

Num livro de introdução à Sociologia como é o de Anthony Guiddens ( e eu relembro que este autor foi assessor de Tony Blair e um conceituado mestre de pensamento, um ideólogo, da política de centro-esquerda, logo é uma referência teórica incontornável para a nossa política de centro-esquerda e, acentuadamente, para este governo), ele dá-nos conta do que se passou com a política da educação na Grã-Bretanha, contextualizando-a com dados provenientes de outras parte do mundo.

E o que nos diz ele? Que a educação foi e continua a ser um campo de luta política. O que quer dizer, se há luta, que existem duas soluções conflituosas entre si para o exercício dessa actividade.
Se no início a discussão se centrava sobre a questão de saber se a escola devia ser inclusiva ou selectiva, se devia promover as igualdades sociais ou poder utilizar os seus poderes para seleccionar formalmente os alunos segundo os seus recursos intelectuais e comportamentais, hoje discute-se a bondade da iniciativa privada versus iniciativa pública na gestão da escolas.
A divisão teórica materializa-se na divisão política correspondente, e que em Inglaterra se substancia em Trabalhistas/Conservadores ( a Sr.ª Thatcher introduziu a reforma a favor do sistema selectivo). Thatcher, na prática, instituiu a ideia de que os pais é que deviam poder escolher as escolas dos seus filhos e que estas podiam seleccionar os seus alunos.
Os resultados foram os seguintes: os pais de meios mais privilegiados sabiam como fazer inscrever os seus filhos nas escolas desejadas, e um número cada vez maior de crianças via ser-lhes negada a entrada na escola da sua primeira opção. A oportunidade igual de escolha induzida pela escola caia por terra como modelo social.
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Quando Tony Blair toma o governo da Grã-Bretanha compromete-se a apoiar as escolas que mantinham como modelo de gestão a inclusão social, mas não alterou radicalmente a reforma da conservadora Thatcher, permitindo o método de selecção que certas escolas já tinham, sustentando a ideia de que a diversidade educativa se baseia na ideia de diferenciação de capacidades. Ao mesmo tempo provoca iniciativas que estivessem relacionadas com o desempenho das escolas, não pelo reforço do investimento económico mas pela reforma dos recursos aplicados à educação. Assim criaram o programa "Começar de Novo", reestruturando totalmente o corpo dirigente e docente das escolas que não tinham sucesso, obrigando-os a um ratio de 15% de aprovação dos seus alunos no exame nacional no início da reforma e 25% a partir de 2006, promovendo estratégias antiabsentistas dos alunos, fazendo encaminhar para as escolas "orientadores escolares" que se concentravam nas crianças e adolescentes em risco de exclusão social, libertando os professores desse papel e deixando-os entregues à preparação das suas aulas, e em terceiro lugar começou a diferenciar os ordenados dos docentes com base no desempenho dos mesmos, quantificado pelo sucesso dos seus alunos nos exames. Ao mesmo tempo Tony Blair apoiava a gestão privada das escolas.
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O que se sabe hoje: que as críticas sobre a distinção da remuneração de acordo com os desempenhos é injusta para com todos aqueles professores que leccionam em escolas de meios mais desfavorecidos, e que o sistema privado de educação em todo o mundo não satisfaz com sucesso, apesar dos recursos disponíveis, os objectivos da educação, a saber: promover a socialização, potenciar a oferta de iguais oportunidades, criar uma força de trabalho eficaz e preparar cidadãos informados e participativos.
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Em qualquer sistema educativo os níveis de literacia são oscilantes, e não dão garantias de sucesso per si, dependem persistentemente de cada escola envolvida. Esta conclusão fez com que os governos americanos e do Reino Unido procurem implementar novas formas de gestão escolar, privada, ainda que recorrendo a financiamento público, em escolas que revelem baixo desempenho escolar. O que quer dizer que estão a caminhar para a "privatização da educação", como o afirmam muitos observadores.
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Os críticos da privatização demonstram que a gestão privada das escolas "não passa de uma "reconfiguração" das melhores práticas utilizadas nas escolas públicas" e que visa o lucro e não as reformas do ensino no sentido de eliminar desigualdades.
Sendo o mercado das certificações profissionais e o da indústria informática (por associação da ideia de sucesso escolar com a posse de tecnologia informática: software educativo e hardware onde correr o programa) tão apetecível, pululam "empresários da educação" por tudo quanto é sítio na América.
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A política da educação está em hoje em luta entre os que defendem a educação como um campo passível de dar lucro e de ser gerido como uma organização privada, e aqueles que defendem que a escola deve ser pública e estar ligada ao combate à pobreza e exclusão social, prestando melhores serviços à sociedade.
Como diz Guiddens, a primazia do modelo de gestão privado está em ligação à primazia do modelo de sociedade mercado na nossa época. E adverte que a entrada no sistema far-se-á através dos empresários dos meios de produção audiovisual.
É que aqui, e a conclusão é minha, o caminho de uma nova ordem na educação, que cabia ao Estado manter até para salvaguardar a sua existência, e a sua integridade como forma institucional de regular a ordem social, ficará entregue aos que têm interesses em proceder à vendas de ideias e de formas de estar que estejam relacionadas com os produtos que comercializam. Criam clientes nos bancos da escola para as suas presentes e futuras reproduções culturais. Mas talvez se atinja o sucesso.
E isto, para mim, é que é a ideia de um Estado falhado.
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Que os nossos governantes se lancem sem reflexão, e sem tempo de maturação na sociedade, para estas ideias e para estas reformas consecutivas na educação portuguesa, é que me desconsola. Se os resultados em outros países ainda hoje estão a ser apurados, se levaram décadas a adequar essas reformas à realidade, se procederem por fases e com uma aplicação local, vêm estes e resolvem impor um plano governamental totalitarista às escolas portuguesas.
Devem sentir-se verdadeiros Dr. Zandiga.

4 comentários:

Anónimo disse...

A ideia de "Estado falhado" pressupõe uma determinada organização social, a do Estado-Nação.

Por isso não diria que o Estado falhou, mas sim que o mercado devorou o Estado e que este se transformaou num aparelho do Capital, reduzindo a Nação a uma ideia de "passado".

No fundo é um processo com traços semelhantes ao registado nos antigos regimes comunistas (URSS e China), só que com o acento tónico nos centros financeiros mundiais e nas organizações transnacionais.

Enquanto na URSS e na China o Estado serviu e serve de motor e de veículo principal de regulação à acumulação do Capital, nos restantes países rendeu-se à lógica do mercado e está integralmente dependente das comissões de gestão, de fachada partidária, que assumem nas suas mãos as encomendas e os cadernos de encargos dos grandes grupos económico-financeiros.

Diria que o modelo político-mafioso da actual Rússia, representa uma forte tendência de acumulação do Capital, que pode vir a reproduzir-se noutros contextos, com mais ou menos crueldade.

Isabel Salema Morgado disse...

Subscrevo inteiramente as suas palavras, mas insisto na ideia de falência do Estado, desculpe-me, pois quando este permite ou instiga ao assalto da Escola pelas forças empresariais, está a declinar o exercício de uma das suas funções principais:permitir a reprodução de valores identitários e de interesse público da nação em causa, baseados no pressuposto de que essa reprodução se faça segundo um modelo social de igualdade de oportunidades.

Dir-me-á que as escolas privadas também podem contribuir para a preservação dessa memória e dessa identidade, e eu respondo que sim, se elas forem reguladas, porque senão o que acontecerá é que aos interesses públicos sucederão e passarão a dominar os interesses privados de cada "dono" da escola.
isabel

Anónimo disse...

É curioso recordar-me de um texto já com muitos anos, de origem pouco relevante, onde se considerava que o que se passava então em Beirute (disposição de feudos familiares e político-mafiosos em guerra civil), anunciava o futuro da organização do Capital.

A guerra a que se assiste actualmente em Portugal ainda releva do nível da corrupção, da legislação à medida, da propaganda
e da mentira.

Mas a partilha do território pelos grupos financeiros e gangs de corruptos (autarquias, associações, fundações e ONGs) começa a ser uma realidade cada vez mais evidente.

A escola, desde Ana Benavente que tem estado sujeita a um processo de desintegração, sob o lema do multiculturalismo e do igualitarismo que coloca os docentes ao serviço dos planos ideológicos do biopoder.

A partir do momento em que o aluno é colocado no centro processo educativo, este automaticamente passa a ser um instrumento de uma planificação desenhada por especialistas.

Porquê? Porque a criança é ainda um ser em PROJECTO, e se o passado e a memória deixam de ser relevantes, então apenas o futuro conta como importante.

É esta filosofia que está na base das transformações a que assistimos. Numa promeira fase introduziu-se a teoria das "competências" e o "saber-fazer", numa perspectiva técnico-instrumental da escola.

Agora passámos à "abertura" da escola ao exterior, isto é, ao mercado e à lógica abertamente empresarial.

É por isso patético assistir à indignação de Ana Benavente, quando foi ela que abriu caminho à presente fase de mercantilização da escola. Apenas se alargou o âmbito de aplicação do conceito de "competência", do aluno passou também para o docente.

Com mais diálogo ou menos diálogo, a partir do momento em que se corrompe o acto pedagógico pela introdução de critérios do mercado, os docentes transformam-se em empregados e os alunos em clientes. Depois é só aguardar os cadernos de encargos dos empresários e as instruções dos burocratas.

O Estado torna-se então irrelevante.

Isabel Salema Morgado disse...

Absolutamente de acordo.
Achei ainda muito surpreendente a perspectiva que enquadrou a sua análise.

isabel