terça-feira, março 18, 2008

A arte de negociar

Uma amiga dizia-me que Sócrates é o homem mais bem preparado tecnicamente para governar, e dava-me como exemplo a rigorosa pretação discursiva de todas as suas intervenções públicas, assim bem como o controlo evidenciado sobre toda a informação emanada dos diferentes ministérios. Mas eu perguntei-lhe se os portugueses tinham votado num director-geral para gerir uma empresa pública ou num político. Discutimos o conceito de política e acordámos que Sócrates é um péssimo político, desde que por este se entenda um negociador para dirimir conflitos e diferendos que o exercício e o uso do poder inevitavelmente provocam. Mas acordámos que o primeiro-ministro é um óptimo gestor, sobretudo da sua imagem. Reflexos e cruzamentos entre uma certa ideia de estado, de governo e de poder.

A minha amiga é capaz de olhar a realidade de frente. Pelo menos eu acho, penso até que ela está muito melhor preparada metodologicamente para o fazer do que eu alguma vez estarei, que a olho, frequentemente, a caminho de nem sei o quê. Eu na realidade a maior parte das vezes não queria era saber da realidade para coisa nenhuma, desta descrição política e social tal como ela me é servida nas notícias. E no entanto, também não consigo fazer de conta que não vivo aqui. E penso: - só devia pensar sobre literatura, ou poesia, ou cinema, sobre teoria filosófica e sobre história, e ler poesia e as crónicas de Lobo Antunes. Só.
Mas qual o quê, esborracho o nariz contra a vitrine aberta para a nossa realidade política-social e fico ali em palpitações, oscilando entre a náusea e a crença, entre a negação e a afirmação, entre o cansaço e a acção, entre a impotência e a sensação que não se é capaz de compreender o que tem que ser compreendido. Daqui só se sai por comoção forte ou empenho criativo direccionado. Eu fico a olhar. Qual estudo empírico, qual o quê.
É engraçado como imagens diferentes se cruzam no cérebro quando se escreve uma coisa e se intercepta uma outra forma de ter sentido o mesmo. Agora lembro-me de muitas das histórias que li ou vi de seres completamente desprotegidos no mundo, histórias que se cruzaram comigo: e que me fizeram? Imagens fugazes do que imaginei quando li sobre a menina vendedora de fósforos, sobre os operários perseguidos de Gorki, ou ainda sobre os judeus desalojados de suas casas e separados das suas famílias, e também sobre os pequenos dos Esteiros, ou ainda sobre o Zezé e o seu pé de laranja lima.

-Queres que eu te leia a história do Zezé?
-Não mamã, essa história é muito triste.

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