sábado, março 08, 2008

Não, agora a sério.

Há ali uma zona quase ao fim da Avenida da Liberdade que quando nos voltamos para trás dá para ver bem até ao Marquês de Pombal. No ar esvoaçavam milhares de bandeiras brancas e um corpo compacto de indivíduos movimentava-se. Peguei no meu filho ao colo para que essa fosse a imagem da solidariedade, da força e da beleza que ele retivesse, a imagem de uma companhia com milhares de pessoas a moverem-se em conjunto que ele associasse para sempre à ideia de uma manifestação.
Mas quem sabe o que ficará na sua memória: o cansaço pela longa hora de espera para iniciar a marcha? Os milhares de sapatos, pernas e costas que ele contemplava apertado no seu ângulo? Os gritos esporádicos que sacudiam a multidão em uníssono? Irá fixar esse movimento que fazia crescer as conversas espontâneas com pessoas que não se conhecendo entre si se perguntavam mutuamente em qualquer lugar onde se encontrassem: "Mas será que é agora que a ministra nos vai ouvir? Será que é agora que ela desce da sua fantasia antidemocrática de governar em gabinete e vem saber realmente acerca de nós, os seus agentes? Será que a equipa ministerial ainda vai conseguir dizer que estamos manipulados, que somos desinformados, que somos egoístas e uma classe inerte e anti-reformista? Será?"

Que ideia terá um dia uma criança que caminhou pela mão da mãe, que percebeu o seu orgulho quando via multiplicada por cem mil a sua presença, que sentiu o carinho dos manifestantes, que colheu os seus sorrisos, que ouviu as suas brincadeiras, que sentiu a simpatia da união dos que têm uma causa comum? Mas que também se sentiu cansada e aborrecida a certa altura?
Eu só conseguia pensar: a quantidade de saber e de conhecimento que vai a descer esta avenida... a quantidade de bom ensino que aqui vai... quanto empenho e competência de tantos mestres portugueses. Que belo exemplo de cidadania. E no entanto, que desperdício de energia que este ministério desbaratou, que pessoas desmoralizadas e desautorizadas no exercício de uma profissão a qual tudo deve à autoridade científica e pedagógica, mas também social, dentro da sala de aula. E ainda se o conhecimento se transferisse por osmose... talvez a razoabilidade se tornasse regra no discurso e na acção dos governantes da tutela. Mas qual o quê, nem osmose nem decreto consegue fazer um bom ensino.
E já se começou outra vez na demagogia: os professores são anti-sociais, são ignorantes, são manipulados. Outra vez e uma vez mais há que fazer rolar a pedra montanha acima, pode ser que de cada vez se ganhe mais uma pessoa para a causa que é a do exigido e manifesto respeito pelo saber.
..
E é claro que há pessoas em situações económicas e sociais bem piores e que não fazem manifestações, claro que as há. Claro que há pessoas sem emprego, quanto mais vínculos vitalícios, famílias em situação muito difícil para sobreviver. Claro que as há. Mas esta manifestação não foi pela manutenção de privilégios, mesmo se estes sejam sobretudo aqueles que um agente da comunicação vendeu como discurso de boa governação para a área, foi sim uma luta séria para a inclusão social do papel central do professor em qualquer sistema de ensino. A minha escola esteve lá. Presente, com orgulho.

4 comentários:

Anónimo disse...

"uma luta séria para a inclusão social do papel central do professor em qualquer sistema de ensino"

Mas o que é que isto no fundo quer dizer?

O conceito de "inclusão" referido por Isabel Morgado no caso do ensino, aplicado ao professor, soa a qualquer coisa de incompreensível e mesmo pungente.

Será que o professor está em vias de ser "excluído" do ensino? ou a ser discriminado?

Algo me faz lembrar o tom em que alguns procuram a sua afirmação em encenações folclóricas e infantis, como nos desfiles e paradas de "orgulho gay" ou nas representações "populares" do BE.

Esta fuga para o místico (trajes negros e círios) e para o carnavalesco, tem a (des)vantagem de juntar o ritual mariano, tão incrustado nos neurónios dos portugueses, com a capacidade de organização dos aparelhos burocráticos que dominam a cena política.

Seria trágico que voltássemos aos equívocos do palco simbólico, em que os profissionais do espectáculo controlam e recuperam toda e qualquer manifestação de descontentamento, em detrimento de uma análise política e objectiva de quem detém efectivamente o poder sobre a escola e os professores.

Porque o problema não residirá tanto na inclusão ou exclusão social dos professores (perspectiva pobre e politicamente inócua), mas antes no papel que se projecta para a própria educação, como referencial de mercantilização e de submissão de todos os seus agentes ao Capital.

Isabel Salema Morgado disse...

Mas porque é que é "politicamente inócua" o tipo de representação social que se associar ao papel do professor? O que quisermos fazer deles/com eles é um reflexo do modelo do que quisermos definir em termos políticos com as relações de poder em geral, ou não?

Eu admito que se mude todos os papéis socais da figura de professor, se se admitir imediatamente que essa alteração terá consequências não só no sistema de ensino, mas, sobretudo na vida política e social. Dir-me-á que isso é de somenos numa sociedade que descentralizou e nivelou as relações de autoridade? Ao que eu responderia que isso era uma falsa análise, pois a tentação do poder não desaparece pela implosão das figuras intermédias de poder, o que levará o enfraquecimento em coordenadas do comportamento, nomeadamente da população estudantil, há-de sobrar em ânsia por uma figura autoritária. O que seria uma vivência democrática de coexistência com poderes legitimidos pelo saber e pelo desempenho,passa a ser vivido como uma experiência traumática de seres cativos não de uma ideia de liberdade mas de falta total de responsabilização e conformidade a regras claras acerca de esforço, consideração por objectivos e aprendizagem de comportamentos que potenciam a participação dos indivíduos na resolução de problemas comuns.
Como nível de intervenção ideológica mais socializante do que a escola só conheci a família em tempos que já lá vão, e a igreja em tempos mais ou menos recentes.

É que a interpretação de todos aqueles que pensam que a escola só reflecte os valores sociais e não os reproduz ou institucionaliza, engana-se. E se o professor passar ainda mais a ser um elemento desautorizado na sala de aula, preparem-se para que isso seja assim com todas as outras figuras de autoridade, ou para que já seja assim com essas figuras e não se detenha perante a do professor. Há algum problema com isto? Para quem defende a desordem social, não. Para quem defende um outro tipo de ordem, também não. Muito bem. Vamos saber: qual é então a ordem que essa desordem ou transformação introduzirá? Estará relacionada com os valores clássicos da educação ou com os interesses, como referenciou, da mercantilização do tempo de ocupação dos infantes? E porque hão-de estes serem inferiores aos primeiros? Isto é, porque há-de uma cultura mercantil ser inferior a uma cultura orientada para o exercício de virtudes públicas? Pelo critério que há-de sopesar, mas que não há-de determinar violentamente, e que é o do interesse comum sobre o interesse privado. Mas como estabelecer este critério? Eu não sei de outra forma a não ser a partir de uma democracia deliberativa que respeite os princípios gerais da sua constituição e das declarações internacionais de direitos.

Vestida de verde senti cada camisola preta como a de alguém que pede respeito pelo seu trabalho, como pertencente aos "meus", à minha equipa. O discurso do governo contra os professores não foi inocente, o destes contra ele também não o deve ser.Foi este governo, com esta tutela, que provocou estas cisões "eles" e "nós". Se as pessoas acham que isto é um problema corporativo e não um problema do processo democrático, estarão muito enganadas.

atentamente,

isabel

Anónimo disse...

A resposta da Isabel oscila entre dois aspectos contraditórios, que remetem para o equívoco gerado em torno da própia Escola.

Por um lado a escola encontra-se dessacralizada, desacreditada e desvalorizada, enquanto instituição central do Estado-Nação (A Escola Republicana de Jules Ferry).

Por outro, é invocada por todos aqueles que se lembram de "reformar" e "modernizar" a alma e a pátria lusitana (um dos casos mais peculiares e inflamados terá sido porventura o de Antero de Quental em revolta de agonia contra o "inimigo", o "passado", tal como os nossos contemporâneos Ana Benavente e Sócrates, cada um à sua maneira).

A escola, no momento presente, representa apenas uma pequena parcela no processo de aculturação das novas gerações, em competição com os media e todo o aparato tecno-informático que invade o espaço privado e público e comanda o merado global.
http://diacrianos.blogspot.com/2008/01/rumo-ao-capitalismo-total.html

Daí alguma ingenuidade em acreditar que a Escola ainda poderá operar o milagre da multiplicação dos pães e da transformação de água em vinho, à margem do biopoder.

Quem manda realmente na escola são sobretudo as agências transnacionais e os agentes da Nomenklatura global. Os docentes apanham os papéis que lhes atribuem os intermediários das burocracias locais.

Neste quadro, envergar camisas pretas, castanhas, rosas ou vermelhas, não fará muita diferença, desde que se comportem como funcionários-vassalos dependentes do Estado-feudo que os alimenta.

No fundo trata-se de escolher uma côr do mercado das ideologias pronto-a-vestir.

«Em vez de uma nação hão-de surgir talvez, sobre o palco do futuro, associações de egoísmos individuais, fraternidades com o fim de explorarem pelo banditismo todos aqueles que não fazem parte delas e outras criações de utilitarismo vulgar.» Nietzsche

Isabel Salema Morgado disse...

Se não se importar reagirei ao seu comentário com um post que identificarei para o efeito, sim?

isabel