domingo, março 02, 2008

Uma janela com vista para a chuva

Li o livrinho de Allan de Botton como quem come tremoços.

Do alto da sua bonacheirice, Churchill ficou parado em cima do tampo da minha mesa, num tempo que foi o tempo em que foi convidado para Ministro das Finanças. Sei que anda atarefado e distraído com os seus projectos para a Grã-Bretanha no fim dos anos vinte, por isso pode ficar suspenso nesse tempo que o traz feliz e activo. Não precisa da minha atenção para nada.

O texto que escrevo sobre o meu excelso Apel também paira sobre a ideia que tenho da realidade e olha para mim a reclamar um ponto final, mas a minha circunstância não está emparelhada com a da reflexão trasncendental. A imensa sabedoria do filósofo não se compagina com a minha estarolice.
Não, o que eu quis foi ler Botton, e fi-lo num tempinho.

A história do livro é a história de uma paixão e de um namoro vivido pelo corpo e mente de um filósofo. É reveladora do humor e da inteligência, do discernimento sentimental e do lugar da consciência que é possível dentro de uma paixão. É toda uma nova perspectiva que os livros dos psicólogos não contemplam, e que é a da história da razão pessoal compelida pela emoção, e desta observada por aquela. Um belo trabalho de análise e de auto-reflexão sobre a paixão amorosa.

Li o livro como quem olha a chuva num dia de vendaval por detrás de uma vidraça que a protege da intempérie. Não que a pessoa não saiba o que se passa lá fora, pois se o está a ver, a ouvir, a sentir, enfim, sabe identificar os riscos do temporal, mas a verdade é que quem não está lá fora não está verdadeiramente a sentir a chuva. Não é que não saiba o estado em que ficaria se estivesse no exterior, porque quem já andou à chuva sabe que ela molha, e no entanto, não se estando à chuva ela não nos pode molhar. O saber e o viver são dosi estados distintos, ainda que haja um ponto que os intercepte, é um ponto entre o tempo passado e o presente.
E nesse conforto - ainda que nunca nada esteja absolutamente estabelecido de uma vez para sempre quer no sujeito tranquilo ou quer no sujeito que aporta essa tranquilidade, e isto sabe-se por que se sabe - há uma espécie de aquietação por se viver como se em eternamente.

Os sobressaltos das paixões, das relações tumultuosas dos outros, são entendidas, se nós próprios não estivermos a viver qualquer coisa que se lhe assemelhe ou que queiramos que se assemelhe, como filmes antigos que revemos com distanciamento e com displicência enfatuada onde vamos assinalando aqui e ali os seus anacronismos.

Botton fala de paixão, da que fulgura no amor por uma mulher, e só percebemos que não era a descrição da paixão - a paixão imobilizada pela teoria, pelo verso do poeta, pela ficção ou na oração - no fim do livro.
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Foi golpe de um génio meio maligno. Prende o leitor desde o início à ideia de que aquela é mulher encontrada, será por acaso, será por necessidade?, e com que o autor queria partilhar toda a sua vida ao ponto de ir buscar a literatura matemática e a filosófica que lhe explicasse a in(evitabilidade) daquele encontro, para depois no fim acabar por nos dar uma lição. Ou será para depois dar uma lição a Chloe?

- Sabes Chloe - podia ter dito Botton - Eu escrevo para te dizer que queria que fossemos sujeitos na realidade de Parménides e acabamos a dar razões a Heraclito. E esta consciencialização foi penosa, não se tratou de uma aula de filosofia que rebenta com o senso comum, foi uma lição de dor física.

O autor escreve para dizer à mulher amada que existem várias interpretações sobre o que é a realidade, e a realidade de uma vida apaixonada não é de um tipo interpretativo tão distinto em si de todas as outras da natureza.
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Desde a antiguidade que os filósofos reclamam: uns pela imutabilidade das coisas tal como elas são, enquanto outros procuram justificar a mutação das coisas tal como ela aparenta ser.
Parece que Botton escreve para dizer algo do tipo: eu posso passar uma vida inteira a defender a imobilidade desta forma de te amar, sujeita a transformações que nunca alterarão o principal, que é a mesmice paixão por ti, ou posso converter-me, por força das circunstâncias, numa prova viva, num momento do fluir imperioso com que todas as formas de manifestação do ser operam, sendo a paixão sentida por ti não a excepção mas antes uma regra.

E, como Chloe aprenderá ao ler (se é que Chloe o lerá alguma vez, e, lendo-o, com isso se importará ou deixará afectar), este livro foi escrito para lhe dizer que o autor em tudo lhe sobreviveu, e que a paixão fluiu e voltou a refluir, transfigurando-se uma vez mais na presença de outra pessoa.
E para sempre? Ou mais? Ou um pouco menos? Ele não tem coragem absoluta par nos esclarecer. Apenas nos entreabre a porta para essa hipótese, a de que em tudo a paixão se parece com a mesma, ainda que seja outra. Fica a dúvida, porém, e nesta o devaneio mítico dos românticos (a paixão é sempre única) ou o retorquir dos cépticos (nem pensem tal!).

O livro Ensaios de Amor deve muito, no tom e na estrutura, ao livro de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, ao qual não faz referência. Mas isto em paixões, mesmo aquelas que nos influenciam a pensar sobre o que sentimos, é tão importante o que se diz como o que ficou por dizer. Os filósofos chamam-lhe o diálogo implícito. Mas dão-se menos bem com esta realidade. Pelo menos os que eu conheço melhor. Eu, do meu lado do vidro, compreendo-os.

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