sexta-feira, agosto 31, 2007

Dizer o que é 2

Já em política a legitimidade das acções e das palavras foi-se ganhando no recurso a possibilidades terrenas e humanamente concretizáveis de vivermos em conjunto, passíveis de serem avaliadas, sufragadas e vigiadas. Nessa esfera de acção humana toda a palavra é pública, toda a acção é de interesse geral. Ao legislador já não se pede que represente um modo de ser por regra de uma graça divina, mas que nos represente da melhor forma que as suas faculdades, e o nosso mandato, lhe possibilitarem.

Diz-nos Arendt: " É evidente que os factos não estão seguros nas mãos do poder. Mas o importante é que aqui o poder, pela sua própria natureza, não pode nunca produzir um substituto para a sólida estabilidade da realidade factual que, por ser passado, cresceu até a uma dimensão fora do nosso alcance. (...) Na sua obstinação, os factos são superiores ao poder; são menos passageiros que as formações do poder, que surgem quando os homens se reúnem com um objectivo, mas desaparecem quando esse objectivo é alcançado ou fracassa." pp.52-53

É pois a natureza transitória do poder político que nos faz sossegar na ideia de que a defesa de ideias ou de acções realizadas em nome do interesse público serão, inevitavelmente, fiscalizadas por um público. Poderá é não vir a ser o mesmo público, aquele que sofreu as consequências dessas políticas, o que deixará em aberto a questão do castigo ou da recompensa terrena, da justiça aplicada. A não ser que consideremos as páginas escritas da história como método de avaliação suficiente. Para os que sofreram às mãos dos maus políticos não pode ser suficiente, mas já deve trazer alguma inteligibilidade à realidade a hipótese de que os factos perduram sob o manto pesado da impunidade e do desvario de quem julga tudo poder sem a ninguém o dever.

quinta-feira, agosto 30, 2007

duração 2

Quando alguém morre, e a fazer-se uma exortação sobre essa personalidade, o discurso de apresentação/aclamação da vida de outrem transforma-se muitas vezes numa exortação da nossa vida passada com o morto, por convivência social ou cultural. É preciso um grande espírito analítico ou um distanciamento académico ou social para que o discurso sobre o morto seja sobre a sua vida ou obra, e não sobre a nossa vida e o modo como sentimos que o morto passou por nós então.
Quando choramos uma morte, e um morto geralmente leva a um choradinho, fazemo-lo também por ele, mas muito por nós na ausência dele, também por uma ideia dele e de nós, por alívio, por saudade, ou o que for. Mas há um choradinho por algo que passou e já não volta: a nossa própria vida passada que a morte dos outros nos faz carpir. E esta experiência não requer conhecimento profundo, analítico, da obra, ressalvado tão-somente que a pessoa viva fale sobre si no modo como o foi quando o morto ainda era vivo e passou por si. Mas não sendo complicado também não é assunto fácil. Daí que a presença excessiva do eu em artigos que foram escritos para serem sobre a morte do outro seja uma forma de homenagem não menos cuidada ainda que pouco lúcida. Há quem se irrite com isso, quem ache tudo uma pirosice de egos que não sabem sentir nem sabem escrever o que sentem, apropriadamente. Eu vejo um bom momento para lamentar, quase o único no universo das lamentações que não nos cobrirá de vacuidade, um momento próprio para fazer um choradinho sobre o tempo que fez, para falar do outro falando também de nós que lhe sobrevivemos e o contamos em voz alta. E não deixa de ser uma forma de homenagem, nem deixa de ser sincera, é o que é, uma viagem mais por aquilo que geralmente nos interessa mais e melhor: nós mesmos.

Eu leio Séneca frequentemente. E tanto ensinamento de desapego também arrelia. Mas não deixa de ser uma forma de nos ensinar a ser mais livres perante essa coisa de se morrer.

Um destes dias fui visitar as casas onde viveram os pastorinhos de Fátima. As origens humildes, em tudo conformes ao modo de vida de toda uma imensa maioria de população no Portugal pobre e rural do início do século XX, não me surpreenderam, ou mereceram reparo sociológico. Eram formas de vida que sei de cor de um tempo que foi também o modo de viver partilhado com os meus antepassados. Vi as casinhas de Francisco e Jacinta, os irmãozitos, e a de Lúcia. Não são as casas como espaços museológicos curiosos que poderão interessar a quem ali vai, ou não isso apenas, mas interessará sobretudo a forma que as manifestações do sagrado pode tomar, e como irrompe em tais espaços. Não o sagrado que é contado ou investido em nós por outrem em rituais de actualização da presença de uma crença em nós, como acontece com todos os cristãos, por exemplo, no acto do seu baptismo, ou no momento da comunhão, mas o sagrado que se manifesta pela primeira vez no contacto directo com a pessoa, em tudo muito novo, mesmo havendo contornos religiosos de uma história conhecida previamente e que contextualiza a aparição.

Sobre a crença dos pastorinhos eu creio profundamente que eles criam, e mais não sei dizer. Não sei mesmo. Aleivosia dos que não crendo julgam que não aconteceu nada que leve os outros à crença. Sobre a aparição da Nossa Senhora de Fátima o que se poderá dizer mais para além das três hipóteses: “creio”, “não creio”, ou “não sei em que crer?”. Dizer que essa aparição é uma invenção fantasiosa daquelas crianças? E como sabe-lo que o foi? Dizer que ela nunca existiu? E quem o pode comprovar?

Sei que há uma história das religiões, e que ser-se cristão, ou budista, ou muçulmano, não é todavia equivalente a ser-se socrático, ou kantiano ou apeliano, mesmo havendo também uma história das ideias. É certo que eu concebo publicamente melhor o que é ser-se, por exemplo, aristotélico, porque sei que tipo de conceitos, de método de análise, de conhecimentos, alguém terá que invocar para se afirmar filosoficamente de tal ou tal corrente do pensamento. Sei que argumentos evocar para defender esta tese. Mas ser-se cristão, vamos lá, não é ser só aquele que segue as palavras de Cristo, ou o que se dedica à exegese da sua vida e obra, porque senão deixaria de haver crença num estado ou numa figura que fala em nome de um tempo e de um espaço que não é o tempo da história e o espaço da geografia humana, e passaria a estudar-se a teologia como mais um ramo da reflexão em filosofia. Não pode ser só isso, ainda que eu ache que isso já é muito, como acho muito que se saiba tudo sobra a obre de um Hegel ou de um Platão, entre outros. Mas, se eu conhecer uma obra, conhecer as palavras de Cristo, vamos lá, não significa por si que eu creia em Cristo. A crença na sua pessoa é uma possibilidade, não somente a crença naquele indivíduo que nasceu em Belém numa determinada época tendo andado a pregar por toda a Galileia, com um discurso ético e social novo, com conceitos extraordinários sobre a forma de vivermos a nossa vida uns com os outros, e tendo morrido nas circunstâncias que toda a cultura ocidental conhece profundamente, mas a crença na absoluta possibilidade ontológica de existir tudo aquilo que ele nos diz sobre a existência de (um) Deus e de um tempo e de uma vida para além desta vida neste mundo.

Que isto interesse a muitos, compreendo, que alguém alardeie a sua descrença, também, que publicamente e de todas as formas possíveis os que acreditam queiram mostrar aos outros a sua crença, igualmente, só não compreendo porque razão a crença não deverá ser do mais íntimo e pessoal que cada um saberá e deixará caber dentro de si. Porque se crermos na imposição de uma crença religiosa, como se de uma ordem social for, estaremos a dizer que a religião não passará de uma manifestação cultural e sociológica entre outras, e que crer, ou não crer, em Deus, dependerá exclusivamente do tipo de socialização que fizemos, do tipo de cultura em que estivemos inseridos aquando do nosso desenvolvimento. Mas então estaríamos a dar razão aos críticos da religião que a vêem como uma forma de dominar outrem em nome de uma ilusão, integrando-o numa espécie de lei, de regime comportamental, aquietando-o numa estrutura já conhecida e aceite pela comunidade. Ora a mim parece-me que a religião é revolucionária neste aspecto: ao reclamar-se herdeira de uma manifestação do divino ocorrido num tempo passado, tem que se dizer automaticamente permeável à presença de novas aparições desse divino no futuro, porque essa é sua razão de ser. Que depois se queira limitar, classificar, autorizar as formas como esse divino possa ocorrer, é que já me parece de uma arrogância ilimitada. E…no entanto, de alguma forma, as religiões presentes terão que se proteger das falsas manifestações, das pseudo aparições para se preservarem como guardiãs da palavra. Porém, nesta forma ingénua de pensar, há algo que não poderemos deixar de dizer: a crer nos que crêem, as aparições não se fazem por ordem ou vontade de ninguém. E isso é da ordem de que tipo de análise? Psicanalítica? Filosófica? Política? Ou pessoal, imensamente pessoal? É pessoal. Como é que eu sei? Não sei. Mas sei que afirmar o contrário é restringir a liberdade individual. A liberdade de acontecer um milagre, ou liberdade de escolher as palavras que melhor dizem a pessoa, incusive as palavras que digam o que viveu como um milagre.

Há um poço, onde os pequenitos afirmaram ter aparecido o anjo, um caminho para o penedo para onde dizem ter aparecido também um anjo, e há uma toca onde as crianças brincaram. Tudo muito estimado e bonito. E se fosse só isto que há a dizer.

sábado, agosto 25, 2007

Duração

Num tempo em que a influência dos meus professores sobre as minhas opções culturais era mínima, havia dois cronistas que me tinham sob influência: Miguel Esteves Cardoso e Prado Coelho.
Lia então as crónicas que Prado Coelho escrevia de Paris e que tão bons livros e tantos outros bons autores me ajudaram a conhecer. Amei a Criada Zerlina porque ele me ensinou a fazê-lo, e vi a Eunice Munhoz no teatro Trindade a proferir as palavras que Prado Coelho me ensinou a ouvir. Gostei tanto de Peter Handke e do seu poema traduzido em francês por Poème à la durée, porque Prado Coelho mo ensinou e muito depois de Prado Coelho gostar dele e “me” mostrar como gostar desse conceito novo, o da duração. E é essa a ideia que eu tenho: a de um homem que fazia os outros gostarem do que ele descobria e gostava.
É assim, uma forma de lamento pela sua ausência numa escrita que permitia aprender.

quinta-feira, agosto 23, 2007

Dizer o que é 1

Aquela minha grande amiga de adolescência, cuja frequência de amizade por lá ficou, contava-me histórias passadas no Oriente, predizendo a escritora, a viajante e a futura sinóloga. Hoje confundo-as a todas. Há aquela do rapazinho puxador de riquexó que leva uma bofetada de uma bela dama perfumada que transportara, o qual sente verdadeiramente como se um beijo dado na face fora, aquela outra de um monge que derrama o liquido da chávena de um visitante a quem serve o chá e que lhe perguntara como poderia vir a tornar-se num sábio, há ainda aquela história do monge que prende a cabeça sob a água de um tanque de um incauto discípulo que ousara indagar ao mestre sobre o significado da vida, e há aquela sobre uma pedra de âmbar que se obriga a manter fechada na mão do discípulo que procurou querer saber tudo sobre o âmbar.

Sobre o âmbar há também a referência àquele maravilhoso colar que uma certa personagem do Os Thibault usa. Ai, se não for de âmbar onde fica a verdade do facto da minha intensa memória desse momento na narração? A luz do âmbar. É. É a luz do âmbar de certeza. A escrita conversada é como as cerejas. E “as raparigas falam muito” diz o Peter Pan à Wendy. Pateta do Peter Pan que não percebe nada de raparigas para além do minuto em que deixa de estar a vê-las.

Gosto da imagem do chá derramado por um monge imperturbável, vejo-o a vertê-lo do bule para a chávena. Ai queres saber como ser sábio, queres? E essa taça cheia de liquido que nem mais uma gota contempla? Verte em demasia.

Ontem à noite, de passagem pela frente da televisão para outra divisória da sala, ouvi o comentador desportivo Rui Santos. Normalmente, em momentos de excepção (a contradição é assumida), fico deliciada a ouvi-lo falar sobre as táctica dos treinadores ou das equipas ou dos dirigentes e ontem, mais uma vez, ele explicava, como se aquelas palavras fossem completamente novas, para uma situação completamente nova, no seu jeito de quem leva o futebol muito a sério, o empate da nossa seleção frente à Arménia. Enfado, náusea mesmo. Fugi dali rapidamente. E no entanto Portugal nunca antes tinha disputado aquele jogo de futebol, aquele momento merecia tanto quanto antes outros o mereceram, sem reacção de asco da minha parte, atenção e análise. Mas há qualquer coisa de insuportável em ouvir falar sempre com o mesmo interesse sobre algo que desapaixonadamente vemos como uma situação sempre igual e da qual já nada consideramos ser possível dizer. Falei deste caso do futebol, podia ter falado de política.
A chávena está cheia e há a percepção nítida de que nada de muito importante, de revelador, tem espaço para se acomodar. E no entanto esta percepção só pode estar errada. Porque cada caso que acontece tem uma existência única, reclama por atenção, mas a saturação, esse estado de exclusão de si na vida ou nos discursos e acções dos outros, põe-nos à deriva, é certo, mas também nos dá uma certa serenidade, mascarando a indiferença ou o cansaço ou a falta de paciência. E sem esta, dizem-nos as histórias orientais, não há sabedoria que chegue nem bem que sempre dure.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Este povo português

"Os contemporâneos de Torga eram: Aquilino, Tomaz de Figueiredo, Jorge de Sena, Nemésio, Pessoa, Pascoaes, Miguéis, Almada, Raul Brandão, João de Araújo Correia, Ferreira de Castro, Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Domingos Monteiro, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues, Eugénio de Andrade, Sophia, Redol, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Irene Lisboa, Maria Judite de Carvalho, Abelaira, Mário Dionísio, Namora, José Cardoso Pires. Foram estes que, em diversos momentos, reafirmaram o perfil da pátria medular e cívica."

Baptista-Bastos, "TORGA: ESQUECIDO E PRESENTE" no DN