sábado, agosto 30, 2008

A ferida 4

Törless humilha um colega em nome de um princípio moral, da ideia de excelência e necessidade de magnificência do ser humano sem mácula, sem sinal de queda em labirintos pulsionais. Ele explora essa humilhação até ela se tornar tensão erótica e exploração da natureza de outrem ao procurar possuir e deixar-se possuir sexualmente por essa pessoa. A aparente indiferença, aquela marca de crueldade usada para com outrem que se percebe não estar a deixar traço num carácter que demonstrara já possuir impulsos inertes quanto ao valor de normas morais que orientam a sociedade, levou Törless a assumir o impensável: vou viver pela pele do outro o que aprendi a repudiar e sempre repudiarei para a minha própria pele. O outro cairá por mim no caminho que seguimos os dois.

A maldade dos outros colegas, que Törless considera bestial, sem finalidade a não ser a da utilização bruta do poder sobre uma vítima, responsável pelos seus actos, mas vítima acima de tudo da exibição arrogante da posse do seu destino por outrem, pelo concerto da sua existência num espaço social definido por hierarquias das quais ele era um peão moral (o crime cometido por um desafortunado na classe social não seria entendido da mesma maneira se ele fosse um herdeiro de uma família poderosa), não é inferior à violência de Törless. Ele pensa que sim, porque aquilo que sente, e o que experimenta, convoca-o perante si próprio de uma forma perturbadoramente nova, e temível pelo que abre de hipóteses sobre as hipóteses, sem redenção, de vidas sujeitas às mais ocultas e desonradas paixões, à luz dos princípios de uma vida moral e virtuosa. Não deixa de ser igualmente culpado. A aprendizagem da descida ao inferno não justifica que para isso se arraste alguém connosco, para nos servir de senha de entrada nesse universo.

Portugal, parece-me, anda a fazer consigo próprio demasiadas experiências de obscuridade, e não se vislumbra nenhuma lanterna que alumie duas vezes, para assinalar a porta de saída.

quarta-feira, agosto 27, 2008

A ferida 3

Por mais que leia sobre o assunto não consigo desenvolver uma opinião sobre o que se passa no Cáucaso, aliás a única referência que tinha deste nome remete-me para as aulas de cultura clássica, tendo-me deixado isso um maior conhecimento do registo mitológico e um grau menor acerca da realidade presente que envolve a geórgia de que nada sei.
O que poderei dizer além do discurso de cartilha e que assenta na defesa dos princípios das regras da Carta das Nações Unidas? Só posso repetir o mesmo de cada vez que surgem conflitos, pois não conheço outra forma de unificar a acção mundial em prol de atitudes de não agressão.

Na realidade, a permissividade relativamente ao mau uso que se faz desses princípios deixa-nos mais desamparados perante a adversidade sob a forma de interesses nacionais em expansão. Isto diz respeito a qualquer nação com instintos imperiais, e a Rússia tem uma longa história de interesses a defender, e de vontade de mostrar a força da sua nação. Pessoa conhecida contava-me como em conversas com um cônsul russo numa nação estrangeira se apercebeu dos ânimos nacionalistas exacerbados, e de um discurso ultranacionalista a varrer a nação, com os mais jovens a integrarem o processo. Vontade que o seu nome conte no mundo, sob qualquer pretexto.

O pupilo Törless recusa-se a compreender o sentimento da condescendência para com as faltas morais. Ele intuiu que a permanência de um acto que constitua matéria de punição no círculo habitual da vida, como se fora uma faceta mais da existência, abria a porta não para a excepção do acto em si, mas para a manipulação da vida como ela era dita dever ser. E a passagem entre o "mundo claro" do quotidiano e esse mundo "obscuro, ardente, de paixões, despido, aniquilador." era do mais fino papel de arroz, e coexistia como possibilidade sempre presente em cada acontecimento. p. 92

terça-feira, agosto 26, 2008

A ferida 2

Há uma personagem no livro que acabei de ler há dias As perturbações do Pupilo Törless que está num período da sua vida em que se encontra a transitar entre as várias percepções que possuia anteriormente acerca da existência, e as que lhe chegam agora de forma abrupta; aquelas tinham-lhe servido de aconchego na sua infância, enquadrando afectos e pertenças, estas outras manifestam-se no presente sob outra luz, sujeitando-o à experiência de viver uma fase de transmutação, quer sobre aquilo que a si próprio diz respeito quer sobre os que o rodeiam. Ele persegue atentamente esses estados que ocorrem sob " vertigem interior", onde gestos, histórias passadas, valores e pessoas, se representam novamente de uma forma enovolada mas sem nós, e que ele define como produto de um "brilho irisado do espírito". Nestes momentos diz-nos que se sente como um santo se deverá sentir com as suas visões ou um artista com as suas intuições. É um adolescente na posse das recordações suficientes que permitem à sua imaginação recriar um mundo paralelo tal como ele também poderá bem ser. A estes estados o autor da obra, Robert Musil, denomina-os de perturbações.
Törless pergunta-se:"Os adultos também serão assim? Será o mundo assim? Será uma lei universal o existir em nós qualquer coisa que é mais forte, maior, mais bela, mais apaixonada e mais obscura que nós? Qualquer coisa que dominamos tão pouco que apenas podemos espalhar milhares de sementes sem objectivo, até que subitamente saia de uma delas uma chama escura que cresce muito para além de nós? E em cada nervo do seu corpo vibrava, como resposta, um impaciente "sim"." p. 155

domingo, agosto 24, 2008

A ferida 1

De tanto falar mal de si próprio, Portugal aliena a consciência que tem de si, transforma o mal num fado, em entidade metafísica que nos suplicia reiteradamente em certos momentos históricos*, ao invés de o identificar essencialmente como uma falta material ou uma falta social que precisa de ser suprida e para tal há que saber qual a meta e qual o método a utilizar para o fazer acontecer.
Acreditar que a economia só por si dará o impulso necessário a uma reforma dos comportamentos e das atitudes é esquecer o que da nossa economia tem o selo dos próprios que dizem mal de si e dos seus, num equilíbrio de ébrios. Mas procurar uma história nova também sugere engenharia de povos, coisa de péssima memória.
Os valores antigos que o hino olímpico homenageia do" verdadeiro, o belo e o bom" não passam de nozes para esquilos no quadro mental que orienta as nossas instituições postas a nu nestes jogos, e se o voo de gazela de Évora ou a corrida de lebre de Rodrigues constituiu um bálsamo para a ferida comunicacional aberta, esta não devia fechar como se nada tivesse acontecido, como se as gentes lusas não tivessem ensandecido, pedindo aos atletas que fizessem aquilo que elas próprias não fazem com a sua vida: sejamos pois responsáveis e consequentes. Não é fácil, não.
*Patético o desabafo do poder, na pessoa do nosso primeiro-ministro, quando este assume que as circunstâncias históricas lhe são adversas, a ele que controla tão bem a auto-promoção como não consegue controlar a história.
P.S. Marco Fortes foi meu aluno. É um estudante do ensino nocturno que não utiliza o seu estatuto de atleta de alta competição para justificar a sua ausência às aulas. Um aluno inteligente e, como quase todos as pessoas que eu conheço deste país, com uma noção de valores éticos de trabalho e de sacrifício um pouco baralhados no discurso. Não é uma desculpa, é uma constatação. Não é um bode expiatório, é um vislumbre de realidade. Mas vamos ver como depressa se há-de pôr essa realidade para debaixo do tapete e se há-de ignorar como tudo isto é uma questão de falta da nossa educação.

segunda-feira, agosto 18, 2008

Ideias cata-vento procuram ponto fixo 2

E no entanto a atitude de cata-vento do ideal político contemporâneo gira sobre um ponto fixo. Reparo na estética festiva verdadeiramente imperial dos jogos olímpicos chineses (que só espantou a quem não acompanhou a linguagem do cinema chinês contemporâneo como é por exemplo o caso do belo "Milho vermelho", ou o soberbo "lanternas vermelhas" e o perfeito "adeus, minha concubina") que se cruza com um um comportamento social herdado no sentido de autoridade totalitária interiorizada com Mao, que repudiaria as representações destes jogos mas não os seus efeitos na comunicação mundial. Temos pois as máquinas imagéticas dos dois sistemas políticos mais longos e conhecidos da história da china a intrecruzarem-se para afirmação do poder da sua casa nacional, mas que concedem aos símbolos universais o seu lugar, o ponto fixo à volta do qual evoluem os actores e os acontecimentos diversos: senão veja-se a concessão à ideia de união planetária, o tomar a pomba por arquétipo colectivo de união e paz, numa cultura que por si privilegia um animal mítico como o dragão.
Quer isto dizer que todos os líderes do mundo sabem já de cor a cartilha das declarações universais e dos convenções internacionais, porque os seus povos a isso os instigam, a questão está agora em agir sabendo que se incorre em falta grave contra o espírito dos princípios universais, aproveitando o desvario, a inércia ou a impotência geral, seguindo o modelo dos poderosos que abrem excepções às regras a cada momento do seu exclusivo interesse particular. E o que é mais tenebroso é que muitas das vezes são as suas populações que lhes dão licença para o fazerem. Ninguém disse que a democracia é perfeita como sistema de governação. Ninguém o pode dizer. Mas menos que isto é que não, também, de todo.
Mas como melhorar o sistema político democrático?

domingo, agosto 17, 2008

Ideias cata-vento procuram ponto fixo 1

As ideias do século, da década, do ano, do mês, da semana, do dia e até da hora.
As ideias da superstrutura, da infra-estrutura, do id e do ego, da história universal e as da história nacional, a cultura do grupo, da família, dos amigos, da escola, da igreja e das associações. As ideias da moda e as ideias que se querem intemporais.
As ideias culturais e as estruturais, as do sistema e as individuais, as gerais e as particulares, as extensas e as intensas, as objectivas e as egocêntricas, as subjectivas e as desinteressadas, as materialistas e as imaginosas, as dialécticas e as maniqueístas.
As ideias pragmáticas e as ideias desinteressadas.
Ideias cata-vento que mesmo em convenções políticas internacionais não nos indicam o norte apenas nos mostram de que lado sopra o vento. Há-de ser importante, para quem é pescador.

segunda-feira, agosto 11, 2008

convenção

Partindo do princípio que a nossa linguagem é uma convenção, o que há então da nossa linguagem pessoal que não seja em si uma convenção imposta por um dos múltiplos grupos da nossa socialização? O que há então de original, de pessoal e de único num ser que fala mas não inventa conceitos, apenas os repete e para mais num cruzamento reduzido entre si de vocábulos? Quem somos de facto, nós os que falamos e proclamamo-nos como de uma identidade, para além do que socialmente é expectável que sejamos? E o que de rebeldia relativamente a esse facto não passa de propensão para a delinquência por preguiça, obstinação na contrariedade como marca, ou mera sujeição a outra forma de existir, dita alternativa? Que parte do meu eu, por exemplo, não é o de todos os outros que possam reclamar um relacionamento comigo? Quem me dá as palavras para a voz da minha consciência? Qual a fonte que me permite dizer que concordo, ou que não aceito, que sei, ou que ignoro? Mais... quem tem o poder de mudar o meu comportamento, de alterar o meu estado de espírito e de exacerbar as fraquezas e vilanias ou as consistências benfazejas do meu carácter?

Naquele tempo tínhamos que ler o Vol de nuit de Saint-Exupéry em francês. Eu lia o livro como que tem uma dor de dentes mansa que mói mais do que dói. Um dia, no intervalo das aulas alguém do liceu me passou para as mãos a tradução do livro em português. Lia as sensações do piloto sobre uma fuselagem tremente e o meu cérebro tremente de prazer pelo ganho de sentido.
É em português que eu sinto o que os outros dizem que sentem. Mas não preciso da língua para entender a dor que pode afligir outrém. E sobre a dor das pessoas eu não me questiono pela sua legitimidade. Será verdade isto? E se eu ousar e afirmar a natureza convencional da dor? Eis como se pode praticar o mal, ou justificá-lo. O atrevimento sem causa.