Há quem no PSD já comece a ver em Manuel Ferreira Leite a futura primeira-ministra de Portugal, a timoneira do PSD e a guarda do país. Já estou a vislumbrar os "antónio Vitorinos" do PSD, que também os tem, a afilarem um sorriso e a treinarem um "Habituem-se" para o espelho, para depois o fazerem ouvir para a ala dos meninos traquinas, primeiro internamente, e depois para o país ; e não para o mundo porque esse tem mais gente para ouvir.
Há qualquer coisa de assustador nesta ânsia disciplinar, nesta procura de mestres-escola, por muitos dos nossos políticos com responsabilidades de escolha de individualidades.
"Habituem-se". Mas a quê? À arrogância, à pose autoritária, à ideia de que o chefe tudo sabe, tudo pode e tudo manda? Eu já vi os rituais de poder de Manuela Ferreira Leite e não me recordo de ela manifestar assim um valor acrescentado tão diferente da actuação de Sócrates. É a repetição desse modelo de acção no poder que almejamos?
Há um gostinho na pose de chefe que em tudo me apoquenta neste Portugal de "Presidentes da Junta" a porem o dedinho e a gritarem "Eu. Eu. Eu." enquanto se acotovelam em cargos públicos. De líderes que confundem rigor e capacidade de trabalho, com insolência e maus juízos de valor sobre as competências e os méritos dos seus cidadãos.
Para quando governantes que tenham um discurso enquadrado com o sentido de responsabilidade, de brio e de vontade de melhorar dos portugueses, e que seja coerente desde o primeiro dia de campanha até ao último dia de exercício de poder? Para quando um "Vou habituar-me a estar à altura do povo que me elegeu? Ainda que com um sentido de ideologia de princípios universais mas que não se mostrem imunes à crítica e ao significado da realidade a emparceirar com a ideia? Para quando pessoas que aceitem a crítica sem se agastarem, nem se enfadarem com os limites e as fraquezas de um povo dado à distração?
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Mas nesse texto de antologia que o
DN publica hoje de Baptista-Bastos, que li com admiração profunda, ainda há uma proposta, a da solidariedade para com uma ideia de país que se vislumbra na consciência de muitos dos seus cidadãos, ainda que todos os pressupostos teóricos e políticos que subentendem o texto não me provoquem adesão emocional ou intelectual.
Não sou uma téorica marxista, mas reconheço a força de uma ideia como a que está presente nos estudos sobre o "Estado como aparelho ideológico" e julgo que há ainda muito trabalho de investigação em ciências sociais e humanas a percorrer nessa área. Um trabalho distanciado, mas não preconceituoso, para com as categoria evocadas.
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escritor e jornalista
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"Trinta e quatro anos depois, continuo a viver no refúgio das minhas esperanças. É muito difícil separar-me dessa ideia de comunidade que foi a moral da resistência, e do conceito de que a História caminha no sentido da libertação do homem. Mas também aprendi a não me acomodar a essa espécie de vocação para o desencanto, reduto onde se lastimam homens e mulheres da minha geração e da seguinte. A festa acabou. Vivemos um instante em que protagonizámos um apólogo presumidamente dialogal, porque, na realidade, havia, e sempre houve, dois países, com compromissos inconciliáveis e linguagens opostas. A existência de classes não é uma falácia, embora queiram inculcar a sua ausência a fim de impedir que as julguemos.
A festa acabou. Não terminou, porém, a definição daquilo que possui a faculdade de reavivar o que pretendem fazer-nos esquecer: os sonhos, a teimosia da vontade, a obstinação da esperança. Chamam-lhe utopia, e condenam-na como fautor de destruição do outro e, portanto, de si próprio, em benefício de uma verdade suspeita. A cada um a sua idiossincrasia, as suas possibilidades, a sua área de agir. Pessoalmente, sou incapaz de viver sem palavras, sem livros, sem o ajustamento desses livros e dessas palavras a uma ética que respeite o leitor, para nunca me extraviar do princípio das convicções mútuas.
Apesar de tudo, creio que não há motivos para extensas decepções. Uma releitura do que éramos e do que somos permite verificar as diferenças reais mas, também, as artificiais, registadas na sociedade portuguesa. Desejávamos mais. Esquecêramo-nos, porém, da pesada tutela exercida por uma Igreja extremamente conservadora, que exaltava a "tradição" e execrava a simples ideia de a questionar; e por uma classe dirigente, composta de cem famílias, que reivindicava privilégios inatacáveis.
O panorama foi muito bem exposto na melhor telenovela portuguesa de sempre: Chuva na Areia, de Luís de Sttau Monteiro, realizada pelo excelente Nuno Teixeira. Seria óptimo que a RTP a reexibisse.
É exacta a afirmação segundo a qual Abril ambicionava fazer da "revolução" uma máquina social, política e cultural influente. As fragilidades começaram na falta de análise das superestruturas, e no dogmatismo (natural no bulício da época) que contrariou a possibilidade de a "revolução" se compreender a si mesma.
Há um fenómeno que não esgota a claridade emocional eclodida há 34 anos: a renovação de uma bela utopia, revelada no número, cada vez mais elevado, de gente nova, atraída pelos prestígios de uma data feliz.
Venha o que vier, nada justifica o niilismo contido no "desencanto". Há uma História que nos pertence, um património moral inesquecível - e um outro país que reaviva o eterno projecto de um outro futuro."